domingo, 25 de janeiro de 2009

Literatura de quinta

Alaranjados e Vermelhos

Ela nem reparou, mas os dois peixes do aquário têm a cor de seu cabelo. Passa na sala todos os dias, senta no sofá, coloca as meias, o tênis, e sai. Muito mais fácil colocar a calça depois das meias, o algodão desliza melhor pelo jeans do que os pés nus, ainda um pouco molhados do banho. Mas a janela da sala não tem cortinas, e ela sempre esquece de levar as meias para o banheiro. Por isso, já vestida, anda até a sala com a toalha nas mãos, senta no sofá, pega o par de meias que estava dentro do tênis, coloca as meias, o tênis, e sai. Às vezes olha para o aquário na estante, em cima da televisão, mas não reparou ainda que os peixes têm a cor de seu cabelo. São dois, entre alaranjados e vermelhos. Acho que se chama japonês esse tipo de peixe.

Ela não reparou. Desce despencando os três andares do prédio sem elevador, e na rua começa a aflição. Nada no Rio é tranqüilo. Mesmos nas atividades mais corriqueiras e prazerosas, como ir à praia, ou à padaria, sempre fica a sensação de que é preciso estar atento. A tensão não vem do que se lê nos jornais, ela mal tem tempo de ler os jornais, mas da própria cidade - não o Rio, mas a cidade que mora dentro dela, a cidade onde nasceu e viveu até os dezoito anos.

No começo, ruborizava por tudo. O pior dia, lembrança da qual ainda sente vergonha, foi quando pediu uma pipoca sem casca. Teve que aturar o pipoqueiro rindo, um riso debochado, que lhe doeu. Ficou entre alaranjada e vermelha. Da cor dos peixes e do cabelo, mas na época não tinha nem peixes nem cabelos pintados.

Hoje, os cabelos entre alaranjados e vermelhos, deslizam com mais facilidade nas ruas da cidade, mas, ainda assim, sem o conforto das meias vestidas antes de se colocar a calça jeans. Talvez só abandone a cidade dentro dela para viver na de agora quando encontrar na esquina um pipoqueiro que venda pipocas sem casca, que ela demorou dezoito anos para descobrir que só existem em Petrópolis. Ou quando alguém lhe mostrar que os dois peixes em cima da estante têm a cor de seus cabelos.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Literatura de primeira

Minha irmã mais nova


Olívia é minha irmã mais velha, de um amor grande e desastrado. Lara é a mais nova. Fico no meio. Minha mãe teve a feliz idéia de nos dar três nomes que, chutando a modéstia de lado, são lindos. Nunca vou esquecer da sonoridade: “ Olivia Pedro e Lara”. Era o porteiro da escola anunciando a chegada de um Fiat 147 vermelho. “Olívia Pedro e Lara”, uma canção feliz da minha infância.

Acontece que apesar de minha mãe ter acertado com nossos nomes, muitos anos antes, um pernambucano de nome Pedro Ferreira dos Santos achou de se batizar Pedro de Lara para ser artista. A conclusão da história é que eu e Lara somos obrigados a ouvir, até hoje, a perguntinha cretina: “Sua mãe gostava muito do Pedro de Lara?” Dessa, Olívia escapou, embora creio que se zangasse um pouco quando a chamavam de Olívia Palito.

Por causa da história do Pedro de Lara, costumo evitar chamar as pessoas por seu apelido óbvio. É uma maneira de preservá-las da chatice. No meu trabalho há o editor Fábio Watson. Jamais, em tempo algum, ele ouvirá de mim: “Elementar, meu caro Watson.” Há também o escritor João Paulo Cuenca, que não vai ter a infelicidade de escutar qualquer piada que faça referência à suas roupas íntimas. A menina Juliana Dametto, contou-me, certa vez, que sua priminha lhe perguntara: “Juliana, no seu colégio também te chamavam de Da Medo ? ” Por essas e por outras, mesmo adorando dar e receber apelidos, evito essas obviedades. É uma forma de evitar a chatice, como falei, e também de exercitar a criatividade.

Tudo isso, para falar de Lara. Olívia, como disse, escapou da pergunta cretina, e por enquanto, escapou também do sofrimento que é ser adestrador de palavras. Mas no fundo, agora pensando, talvez Lara não sofra de verdade ao escrever. Ao menos é o que penso todas as vezes que leio seu blog. Escreve muito melhor do que eu, embora leia bem menos e seja artista plástica, enquanto sou jornalista. Suas palavras e frases circulam com a facilidade com que ela gira pelo mundo e pelas coisas. Lê bem menos, e quando fecha o Dostoievski, liga o Big Brother. E escreve melhor do que eu.


Abaixo, um miniconto. Um exemplo do que se pode encontrar no blog dela -- endereço lá embaixo, no final da página -- O blog é quase totalmente dedicado à poesia, mas sua prosa...bem, vocês já sabem, sua prosa é melhor do que a minha.

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E até os dez anos de idade meu pai se despedia de mim com um beijo na boca.

Enquanto de três em três horas observo a sala, penso nisso. Olho o retrato da porta pelo olho mágico:

Eu agarrado à bola de futebol, em frente à TV, ele afoito passa e desliga, chuta a bola de mim, deixa eu correr atrás pra driblar me dar um tapa nas costas, o beijo de café e tchau.

Na frigideira um ovo, o cheiro de mãe e na boca o gosto de pai. Só sei associar assim. Se a tarde era escola tinha cheiro de massinha, de suor, gosto de sanduíche de atum, de bolinha de amendoim. E no fim, a saída, o ralado... os cheiros e gostos de sangue.

Na chegada do pai não tinha gosto, era puro cheiro o sujeito. A mãe era puro desgosto e gordura, aponta com a colher de pau tem os dedos trincados a segurança desarmada e lúcida. O homem da noite é cansaço, cabeça baixa, olhar perdido. Nem bola nem café.

Dos anos, o homem tomou conta, o cheiro da pura tomou o lugar do gosto de café. O ar perdeu todos os outros gostos, à tarde a escola era matemática, chatice, desperdício. A noite era dormir, nem um sentir, nem faro nem paladar. A mãe sempre deitada, à espera. O sujeito de pazes com uma rotina desgastada de dor, se conforma.

Quando saio do olho mágico, nem magia sinto mais. Só desgosto, desprezo, desapreço. Que hora pra lembrar, que dia pra parar. O trabalho aqui, as despesas em casa e ficar com a memória do pai virando sujeito homem, vazio de afetos. Se me largo como ele nem sei... aliás, sei que não vou. Vou à procura de um café e nem deixo a bola murcha.
Lara Leal

sábado, 10 de janeiro de 2009

Literatura de quinta

A Maquina


Quando eu era menino, meu pai costumava pedir para que eu apagasse alguma luz que havia deixado acesa em casa bradando que não era sócio da Light. Isso numa época em que eu mal sabia o que era ser sócio e muito menos o que significava Light. Com o tempo, soube de outros amigos, que a bronca era a mesma na casa deles. Hoje, que bem sei o que é ser sócio, e tenho uma baita conta da Light para pagar todo fim de mês, fico me perguntando como deve ter sido a infância do filho do sócio da Light. Imagino um palacete iluminado, com imensas janelas de vidro, ostentando luz em meio às casas de um bairro alto, talvez o Valparaíso. Toda vez que o filho apagasse alguma luz acesa na casa, o pai lhe diria carinhosamente: “Precisa, não filho, papai é sócio da Light.”

Mas esse menino também tinha lá suas angústias. Muitos de seus amigos insistiam em dormir em sua casa, mas ele duvidava da honestidade da amizade deles. Poderiam ser interesseiros. Não por causa de seus brinquedos caros - no seu ciclo de amizade, todos eram filhos de algum tipo de sócio: seja de empreiteiras, multinacionais ou até mesmo de bancos - mas o filho do sócio da Light, às vezes, tinha a impressão de que os amigos só queriam ir à sua casa porque, como quase todos os meninos da sua idade, tinham medo do escuro.

Ele não, ele tinha medo é de claridade. No auge do verão, quando ia para a piscina do Petropolitano, tão logo o sol de meio-dia começava a devorar as sombras, ele telefonava pra casa e pedia para que a babá fosse buscá-lo. A preta, muitas vezes, pensava que ele era um menino problemático, triste. Mas tão logo chegava do clube, ele se refugiava nas sombras de uma mangueira nos fundos do quintal, e brincava a tarde toda.

Hoje, acabou a luz na empresa. Esperamos por quase três horas para que ela retornasse e nada. Quando o trabalho começou a se acumular sobre as mesas, um dos sócios teve uma idéia brilhante: foi até um armário nos fundos da garagem e retirou de lá quatro Remingtons empoeiradas. Ele sorriu triunfante. A idéia de guardar as máquinas, há mais de quinze anos, não fora coisa de velho, como disseram à época. Feliz como um menino que ganha um brinquedo novo, eu comecei a traduzir um documento para o consulado. O tec-tec que meus dedos produziam me fez sentir uma imensa saudade do meu pai.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Participação especial de quarta


Foto do amigo Rafael Bacelar. A Central, Nova York, o Kremlin, tudo logo ali.


terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Vídeo de terça

Um Certo James Page

Se você passou adolescência ouvindo este cara, agora é hora de dar uma espiada na adolescência dele.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Crônica de segunda

Israel em Abril

Tenho um amigo que depois de ler "Vidas Secas", deu de cismar com bolandeira. A bolandeira, só fui ver uma, em Abril Despedaçado. A bolandeira girando, girando, os bois rodando, rodando, e a vida se fazendo sem fio e sem volta.

Como se tivesse lido a "Ideologia Alemã", ou as "Teses sobre Feuerbach", Pacu grita, numa cena do filme:


- Tonho, Tonho, os bois estão rodando sozinhos.

Os bois, nós. Israel, a Palestina. A Faixa de Gaza, sempre a mesma faixa, arranhada, do disco que nunca fura. Bem que ameaçam, mas o disco nunca fura. Ou alguém já viu furar ? A faixa: mais do que a intolerância, o nó cego, os laços, como as tiras negras nos braços dos premetidos da morte de cada uma das duas famílias de Abril Despedaçado. O ataque seguido de um contra-ataque, seguido de um ataque, de um contra-ataque e sempre assim. Sem porém a alegria de um gol.