segunda-feira, 25 de maio de 2009

Esta é uma carta de suicídio


Uma carta de suicídio de quem não agüenta mais ver as prateleiras de livros de auto-ajuda e dos antidepressivos vazias.

De quem não suporta mais ver os amigos trocarem os anos de rebeldia e doação pela impaciente adesão ao mundo que existe.

Uma carta de suicídio de quem não suporta mais ver o mundo que existe.

De quem não suporta mais saber que para o mundo existir, torna-se necessário sacar a existência do menino que dorme ao meio-dia, na calçada cheia de gente. (Se não lhe saco a existência, não parto a caminho de lugar nenhum).

Mas para onde parto, já que adio meu existir num ato egoísta?

Não o adio por ninguém, senão por mim mesmo, e se o adio por mim mesmo, estou fugindo.

Se não sei para onde parto, como saberia para onde fujo?

Estanco minha fuga na consciência de que sei que há o menino que dorme ao sol de meio-dia, na calçada cheia de gente. E antes de qualquer compaixão, há a consciência, que me leva a compará-lo a um cachorro.

É como um cachorro, não mais um menino de rua. Ele não busca abrigo na marquise durante a noite, ou na chuva. Ele se estira exausto, ao sol do meio-dia, à passagem de todos. E fui eu quem lhe sugou a existência.

Da consciência, e não da compaixão, vem a culpa.

Mas a culpa a gente abana, como um cachorro sacode suas pulgas.

Sinto culpa também por ter medo, me odeio por ter medo. Tenho vontade de não ter nada, para não ter medo. Mas é preciso, antes, ter coragem para não ter nada.

Mas sinto que estou me perdendo. Voltando ao assunto, esta é uma carta de suicídio.

Não vou me matar, é claro, por causa do menino. Não o menino estirado no chão, ao sol de meio-dia. Talvez pelo medo que tenho de outro, o de olhos castanhos enormes, que me olha e pergunta:

- Você não queria ser cantor?

- Não, eu nunca quis ser cantor. Queria, isso sim, cantar bem.

- Mas esse é o verdadeiro desejo de ser cantor. Agora, veja você, quer ser jornalista, quer ser escritor. Não quer escrever bem. Entende a diferença?

Entendo e não entendo. O menino dos grandes olho castanhos é enigmático. Mas ele vê o menino estirado no chão ao sol de meio-dia.

Estou mais uma vez fugindo do assunto. Isto é uma carta de suicídio. E digo mais, é uma carta e um apelo. Que hoje, comigo, você que me lê também se suicide, porque não há motivo maior para isso do que os motivos que citei acima. E a eles poderia acrescentar muitos outros, mas todos convergem para as prateleiras de auto-ajuda e as dos antidepressivos cheias.

E se você concordar comigo que realmente há motivos para se matar por isso, vai concordar também que a vida sem as prateleiras de auto-ajuda e de antidepressivos vazias é a vida plena que queremos ter. E se assim é, a gente se mata para viver.

(Pausa grande)

Agora que já me matei, vou me redesenhar. Vou marcar pequenos pontos num papel, e em seguida conectá-los com linhas. Do desenho que sair, este sou eu. Se algum de vocês quiser seguir a receita, segue como exemplo, abaixo, alguns dos pontos que escolhi:

- Ter visto no curta da Maria-Flor o cartão postal que dei para ela.
- A morena que sambava na festa da Carol.
- A risada do Clodoaldo.
- A altivez do Rodolfo
- O fato de não ter nada para dizer sobre o Rafael
- O fato de ter pensado em escrever um texto sobre a nobreza de pessoas simples, e ter vontade de citar como exemplo o sambista Monarco, que parece um príncipe. Monarquia já!
- O fato de usar o livro Paz, Amor e SGT. Peppers como mouse pad.
- O fato de ter escrito um texto completamente desconexo, e não saber como terminá-lo, mas saber que não quero, e não vou terminá-lo depois.


texto publicado originalmente em 09/07. Mudam-se os anos e os pontos para o redesenho. A perplexidade permanece.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Nina Simone - My Baby Just Cares For Me (Live - Montreux)

My baby don care, mas eu ligo


Estou apaixonado por Nina Simone. Quase sempre, minhas paixões musicais decorrem das outras, mas não é isso que vem ao caso.

O que acontece é que ontem eu estava maravilhado com a infinidade de versões para "My Baby Just Cares" que estão disponíveis no YouTube. É possível encontrar até mesmo uma versão de 1930, de Jack Paine and His Band - possivelmente a mais próxima da original, composta por Walter Donaldson e Gus Kahn para um musical de 1928. Obviamente, as versões de Nina se destacam. A que apresento no vídeo acima, se não é a mais bonita, é a que melhor mostra seu gênio musical. Mas também não é isso que vem ao caso.

Ao ouvir a música, eu não conseguia entender de forma alguma o verso " Liz Taylor is not his style", talvez por causa da inconfundível - e irresistível - pronuncia da " Nega." Fui buscar a letra no Google e na primeira estrofe encontrei uma surpresa: a palavra "cars", do verso "My baby dont care for cars" era um link. Ao clicar sobre ele, fui submetido a uma oferta relacionada a automóveis. Incrédulo, cliquei outra vez, e surgiu novo anúncio, também relacionado a venda de carros e peças automotivas. Fiquei cheio de dúvidas, e como sempre, resolvi partilhá-las aqui.

O acaso é mais forte do que os propósitos, pois é amigo de longa data da ironia. Justamente na letra de uma canção que fala de alguém que não liga para roupas, shows, badalação, carros, encontro pela primeira vez esse tipo de publicidade. Os especialistas poderão me explicar que se trata de uma importante e eficiente ferramenta de vendas, que associa nomes, cria sistemas, estatísticas, e ao final das contas facilita cada vez mais nossa vida. A eles, respondo apenas que nossa vida está a cada dia mais difícil. Mas persiste a dúvida: será mesmo necessário que tudo vire propaganda ? Há alguns anos, me assustei quando vi uma luz forte no céu, na altura do Pão de Açúcar. Pela manhã, constatei que o OVNI era um carro esporte, pendurado pelos cabos do bondinho para fazer a sua campanha de lançamento.

Naquele dia, tal qual na canção de Caetano, meus olhos buscavam discos voadores no céu, e acabei encontrando um carro. Ontem, eu queria a letra de uma música, e também encontrei um carro. Há claramente uma confusão entre o que se busca e o que se acha. Deve ser por isso que os gênios da propaganda acreditam que quando eu quiser, finalmente, um carro, buscarei por felicidade, carinho e conforto. Mas eu e Nina, que não somos bobos nem nada, sabemos que isso só " My baby" tem.