Ontem, na Lapa, reencontrei Rafael. Numa das últimas vezes em que tínhamos bebido juntos, ele me apresentou Agepê, um clássico popular dos anos noventa, que anda um pouco esquecido. Como gostei do que ouvi, busquei outras músicas e informações. Agepê, agora descubro, tirou seu nome artístico das iniciais de Antônio Gilson Porfírio. Sujeito de carreira longa e vida breve, foi integrante da ala de compositores da Portela, o que no mundo do samba é como ter um posto na Filarmônica de Berlim – mesmo que seja na última estante do segundo violino.
Além disso, foi o primeiro cantor de samba a ultrapassar a marca de um milhão e meio de discos vendidos, sucesso que deve ser creditado a “Deixa eu te amar”, hit que apresento no vídeo acima. Quando ouvi a música, me dei conta que já o conhecia, mas quando ele morreu de cirrose, em 1995, aos 53 anos, eu tinha apenas 11, e estava mais preocupado em ter um posto na Filarmônica de Berlim.
Meu aprendizado instantâneo sobre o cantor se deu, é claro, com o auxílio dos agora inseparáveis Wikipédia e Youtube. Mas a única coisa que eu não encontro em lugar algum é resposta para uma grande questão metafísica, que me assombrou ontem, ao falar de Agepê na Lapa: afinal, ele foi o primeiro dos sambistas ruins, ou o último dos bons? Seus samba caminha sobre uma linha que de um lado coloca os bambas e de outro a praga que se espalharia pelo país nos anos seguintes: o chamado pagode, samba de branco, de paulista, romântico, ou sambabaca. Agepê cruzou a linha, ou ficou sobre ela, heróico, bêbado equilibrista?
Estou preocupado em descobrir, mas isso não significa que eu tenha preconceitos com bregas. O que me intriga, na verdade, é o intangível. É o que faz, por exemplo, "Antes do Por do Sol" ser um filme bom e não uma comédia romântica; faz muita gente só entender porque Roberto Carlos é o rei quando o assiste ao vivo; faz Romero Brito ser ruim e Beatriz Milhazes boa; faz com que Reggae só possa ser cantado por Bob Marley, e dá a Nelson Rodrigues e Antônio Maria a exclusividade no uso de palavras e expressões, que ditas por outros soam piegas.
Talvez o que chamo de intangível seja uma substância ainda não catalogada na tabela periódica. Algo que se carrega sem saber, e que Gal Costa deixou cair em alguma esquina. É o exato elemento que Chico Buarque transferiu, não sei se deliberadamente, de seus discos para seus livros e Didi Mocó deixou escorregar de suas piadas. É o que Caetano reencontrou em “Cê”. Mas confesso que não sei de que seria feita esta matéria invisível. Nos anos de ditadura, um delegado de polícia levantou questão semelhante. Ele interrogava o artista plástico Paulo Brusky, e num determinado momento perguntou:
- Quer dizer então que se eu tirar um azulejo do chão e colocar nessa parede, é arte?
Paulo lhe respondeu:
- Se você colocar não. Se eu colocar é.
A frase é boa, mas não soluciona a questão. Talvez Agepê soubesse a resposta, ou nem se preocupasse com isso, o que é ainda melhor. Mas Agepê morreu, e eu e o delegado ficamos sem respostas. Já Paulo Bruski, tal qual o galo pateta, levou um coice e criou um galo.