quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Para Clodoaldo, também sobredito o Rômulo

Canção dos Largos


Eu ando em busca da canção perfeita

para aplacar essa desfeita que você me fez

Talvez eu a encontre no Largo de São Francisco

numa banca do bicho mais pro fim do mês

nas orações dos crentes no Largo de São José

no Largo do Machado ou em Trafalgar Square

Eu vou para o convento do Largo da Carioca

ou para Ibitipoca, largo essa mulher!


Eu ando em dúvidas a teu respeito,

eu já não sei se foi desprezo, despreparo ou despeito

Eu ando a passos rápidos pela cidade,

não sei se foi maldade ou foi desamor

Meu coração que é largo feito o infinito

agora afoga um grito de tristeza e dor


Que isso vai passar eu sei,

mas a angústia é saber-se uma pluma a mercê do vento

Se eu vejo o tempo como um trem veloz,

tento ancalçá-lo mas ele não cede

Se faço dele um carro-de-boi,

tento ir em frente mas ele me segue


É como uma canção, que sai de parto normal

Ou como a respiração,

quando a gente lhe presta atenção, ela deixa de ser natural


Talvez não haja uma canção perfeita,

talvez não tenha uma receita pra esse dissabor

Talvez quando eu me encontre no Largo do Boticário

ao ser destinatário de um novo amor

eu deixe de querer curar essa ferida

eu largue dessa história pra entrar pra vida


Que é como canastra suja,

ou como o som do vinil

A beleza que há nos erros,

quaresmeiras que ficam nos cerros

muitos meses depois de abril

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Coincidências, tristes coincidências

Escrevi esse texto em março de 2007...

Azul

Quando se viu sozinho, com o fuzil na mão, no meio da rua de terra batida, o sargento J.Mauro teve a certeza de que a situação estava controlada. Todo o pelotão descansava, tentando dividir um resto de sombra que o sol de duas da tarde deixava na calçada em frente. Mauro passou pelos companheiros, e dobrou a esquina. A calma empoeirada da tarde lhe feria os olhos. Caminhou até o meio-fio, e sentou. Estava encharcado. Na loja vazia em frente, reconheceu um regador de zinco, pendurado de cabeça para baixo no teto. Desviou o olhar para as próprias botas, respingadas de lama, e teve vontade de chorar.

Ainda estava na mesma posição, só que com o capacete sobre o colo, quando vieram lhe chamar minutos mais tarde. Olhou para o capacete antes de colocá-lo na cabeça, e a cor lhe lembrou o giz que passava nos tacos de sinuca, nas tardes dos botecos da Rua São Clemente.

Era de uma superioridade inferior, foi o que pensou quando fechou os olhos para tentar dormir. No Haiti, de nada lhe adiantava ser mais alto e forte que os outros soldados, se lhe faltava a virilidade necessária para empunhar o cacetete na hora de afastar manifestantes exaltados, como havia acontecido naquela tarde.

O pelotão fora chamado às pressas para dar cobertura a cinco soldados que organizavam a fila do caminhão pipa, numa das partes mais pobres Cité Soleil. Devido ao atraso de mais de duas semanas, o conflito era iminente.

Minutos depois que chegou, quando o aglomerado de gente de todas as idades e sexos começava a tomar forma de fila, um negro alto, com as maçãs do rosto protuberantes, se deslocou do grupo e veio falar com ele. Quase tocando-lhe a cara com a ponta do nariz, o negro gritou para Mauro uma frase, da qual ele não entendeu uma só palavra. Em seguida, deu-lhe as costas, falou rapidamente com três senhoras que estavam no final da fila, e sumiu num beco.

Uma pedra caiu entre Mauro e dois soldados, e foi como um sinal para que a fila se desordenasse em paneladas, e empurrões. Mais de cinqüenta pessoas partiram para cima dos soldados, que tinha ordens explicitas de só atirar em último caso. Vendo que o grupo se entrincheirava atrás do caminhão, Mauro correu desesperadamente para atravessar a rua. A pressa ajudou a pedrada que recebeu nas costas a derrubá-lo de frente, com as costelas sobre o fuzil. Agüentou a dor, levantou, e continuou a carreira. Já atrás do caminhão, tentou achar no cinto uma bomba de gás lacrimogêneo, mas não encontrou. A chuva de pedras continuava, vinda do outro lado da rua.

A intifada parecia incontrolável, quando o caminhão pipa dobrou a esquina. A multidão como que se recobrou de um transe, e esquecendo os soldados, saiu correndo, catando panelas e bacias que pelo caminho.

Quando os moradores estavam próximos do caminhão, alguns já dando socos e tapas na lataria, um jato d’água derrubou três senhoras no chão. Em pé, em cima do caminhão, um soldado empunhava uma mangueira. De onde estava, Mauro pôde ouvi-lo gritar:

- Vocês não querem água, seus filhos da puta, então toma água.

O soldado segurava a mangueira com as duas mãos, abaixo da barriga, simulando um grande pênis que urinava na multidão.

- Toma água, seus filhos da puta.

O grupo de moradores avançou furioso, engrossado pelas pessoas que saíam das casas e lojas ao redor. O pelotão não teve outra opção, senão abrir fogo. Aos primeiros disparos, a multidão se dispersou aos berros, e em menos de um minuto, a rua que antes era palco de um estrondoso conflito, ficou deserta. O caminhão pipa desligou o motor. De pé, bem no centro da rua, sozinho, agarrado ao fuzil, estava o sargento J. Mauro.