segunda-feira, 27 de julho de 2009

O Amor nos tempos da Gripe

Não era preciso dizer que já não se beijavam. Usavam máscaras o tempo todo. Às vezes trocavam as máscaras, mas se habituaram de tal modo a ver apenas a metade do rosto um do outro que não percebiam as mudanças. Evitavam se esbarrar, e quando acontecia, trocavam por sobre as máscaras olhares tristes e ameaçados.

Não saberiam dizer quando começou. No início, pensavam apenas nas crianças. Talvez eles nos contagiem, pensava ele, nos momentos de medo. Ela, por sua vez, estava resoluta: era preciso sim pensar nas crianças, mas a melhor forma de fazê-lo era sendo forte, para protegê-los. Viviam como reservistas, aguardado a inevitável convocação para uma guerra já perdida.

Ela sentiu os primeiros sintomas. A falta de apetite, a letargia, as dores culminaram num estado febril, que com serenidade, ela esperou passar. Não podia dar a notícia assim, sem ter ela própria a digerido. Além de tudo, do jeito que se encontrava, poderia cometer injustiças. Sempre flutuou por sua mente a idéia de que se a crise seria iniciada por ele. Toda vez que o via fraco, esse pensamento ganhava força. O melhor a fazer, portanto, era esconder os primeiros sinais. Seria o maior fardo de sua vida o remorso de fazê-lo crer, nem que fosse por um segundo, que ele era o único culpado.

A febre foi baixando, e ela aos poucos recobrou a velha lucidez. Só que agora, ela vinha acompanhada de uma resignação tranqüilizadora. Por fim, pensou que era inevitável, afinal eram os últimos entre amigos e conhecidos.

A febre baixou ainda mais um pouco, mas chegou a um estágio do qual não iria embora tão cedo. Não tinha mais o que esperar. Quanto mais demora, mais sofrimento. Ela respirou fundo, chamou as crianças, o marido, e com a voz ofegante e fraca falou:

- Eu sei que é difícil dizer isso a vocês, mas eu e seu pai estamos nos separando.

domingo, 19 de julho de 2009

Pausas

Polifonia, grosso modo, é simultaneidade de varias melodias, harmonicamente dispostas. Muitas
vezes, nas composições polifônicas, as frases musicais são independentes, constituídas de sentido quando cantadas ou tocadas em separado. Juntas, porém, o resultado estético se apresenta mais completo. A polifonia, na musica sacra, chegou a ser proibida por um Papa.

Desde que as bocas se encontraram, ainda no show, até a porta do apartamento, as pausas foram poucas. Pausa para pagar a conta, se despedir dos amigos. Pausa para pagar o ônibus, para achar a chave, e a abrir a porta. Pausa para colocar um disco.

Sob as melodias imbricadas do jazz, fluía um poderoso contraponto, a conta-gotas. Uma camisa, duas camisas. Uma mão, duas, quatro. Línguas e laços, e poucas histórias.

O embaraço, desembaraço:

-Ih, tem que virar o disco.
-Vinil tem essa desvantagem.

Dois mamilos, quatro. Dois umbigos. Línguas, lábios, laços.

O embaraço, desembaraço:

- A pior coisa da nossa geração é a camisinha.
- Tudo bem. A geração anterior não tinha que virar o vinil?