Os velhos, quando vão ao centro, dizem: vou à cidade. Eu debocho, às vezes, dos velhos. Ontem, não. Imbuído da missão de buscar um apartamento, fui deixado na porta do Globo, na Cidade Nova. Vim em direção à Lapa costurando a Riachuelo pelas ruas do Bairro de Fátima. Vi uma cidade diferente, uma Lapa com cores mais suaves, gente mais viva. Na Cinelândia, finalmente parei. Saquei da Mochila o novo romance de Rubem Fonseca, que vem acompanhado de uma edição especial da " Arte de andar pelas ruas do Rio de Janeiro". Não foi coincidência. Sai de casa pensando em ler o conto em algum momento de minha caminhada. (Isso a que chamam de hipertexto, ou convergência de linguagens, eu faço há muito tempo com a literatura).
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Li um pedaço do conto e recebi uma ligação de Rafael. Caminhei em direção à Almirante Barroso e segui em linha reta para sua casa. Dessa vez, foi coincidência, mas acabei por fechar um quadrilátero em volta de uma área do centro, tal qual imaginava o personagem de Rubem. Vou à cidade, dizem os velhos. É de fato uma cidade. Zona Portuária, Cinelândia, Carioca, Lapa - os muitos bairros, as muitas gentes. E a pátina do tempo, diria ela. Ou o tempo tempo, sem pátina, em vôo alucinado por uma Álvaro Alvim de sonho, em que a chuva ameaçava com pingos grossos os pombos tardios da noite que vinha.
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Rafael mora no centro. Há algumas semanas, acalento a hipótese de fazer o mesmo. É uma opção, um gesto largo. Estou pensando e digerindo o assunto - a caminhada foi parte do processo. Solvitur ambulando. Ao chegar em sua casa, conversei longamente com Rafael sobre isso, e Rubem Fonseca se intrometeu. Ele sempre se intromete em nossas conversas, mesmo quando o assunto não tem absolutamente nada a ver com morar no centro. É um amor incondicional esse que sentimos pelo velho. Sempre gostamos de imaginá-lo com o chapéu a tapar metade de sua cara dizendo ao passar pela soleira da porta: "vou à cidade." É bacana ter a literatura como algo que te ligue profundamente a alguém. Muitos casais tem sua música, mas diferentemente das amizades entre homens, os casais se desfazem e as músicas ou se tornam obsoletas, ou viram tabu. Minha amizade com Rafael é precisa e econômica como a literatura de Rubem Fonseca, e terá vida longa, independentemente de onde estejamos morando.
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A coincidência, se obra do acaso ou algo divino, sempre é um presente. E enquanto escrevia esse texto, me veio à memória - que já começa a sofrer efeitos das muitas pátinas do tempo - que o primeiro assunto que fez com que nossa amizade se abrisse - minha com Rafael - foi justamente sobre ruas, apartamentos, aluguéis, bairros. Ele vivia há alguns anos no Rio,vindo de Barra Mansa. Eu acabara de chegar de Petrópolis. Tempos depois, achei um apartamento no Catete. Nossa amizade já estava estabelecida. Ele me perguntou a rua em que eu iria morar . "Bento Lisboa." Ele torceu o nariz. "É um pouco caída, explicou." Mas me deu os parabéns por eu ser, em suas palavras, o " mais novo habitante da cidade do Rio de Janeiro."
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Hoje pela manhã caminhamos juntos pelo centro, buscando apartamentos em ruas mais do que caídas. Rubem Fonseca nos ajudou a ver a elegância da decadência. Nos últimos anos,viramos adultos, assalariados, sem dinheiro e paciência para a Zona Sul, apesar de suas maravilhas, entre elas um certo Rubem Fonseca que toma seu café todas as manhãs numa padaria do Leblon. Ainda não sei se vou morar no centro. Meu amor pela Cidade não precisa de provas. Ele é o mais antigo. É com o centro do Rio que um Petropolitano primeiro se relaciona . De tempos em tempos, meu pai tinha que vir ao tribunal de justiça. Era permitido faltar aula nesses dias. Pelas mãos dele eu vi pela primeira vez os camelôs da São José e as mulheres de calça social e salto e um quê que mesmo menino eu diferenciava do que via por lá.
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Ontem, alta madrugada e muitas cervejas, eu e Rafael tivemos um breve diálogo em que eu imitei meu pai e ele seu. Foi engraçado mas assustador. Foi uma alucinação. Nossos pais não se conhecem. Mas não precisa. Eles falam por meio de nós dois, como as letras de Rubem Fonseca reverberam o vento da Álvaro Alvim, e como ao caminhar em silêncio pelo centro eu e Rafael conversamos com Rubem Fonseca. Não é preciso também que se vá ao Leblon.
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Li um pedaço do conto e recebi uma ligação de Rafael. Caminhei em direção à Almirante Barroso e segui em linha reta para sua casa. Dessa vez, foi coincidência, mas acabei por fechar um quadrilátero em volta de uma área do centro, tal qual imaginava o personagem de Rubem. Vou à cidade, dizem os velhos. É de fato uma cidade. Zona Portuária, Cinelândia, Carioca, Lapa - os muitos bairros, as muitas gentes. E a pátina do tempo, diria ela. Ou o tempo tempo, sem pátina, em vôo alucinado por uma Álvaro Alvim de sonho, em que a chuva ameaçava com pingos grossos os pombos tardios da noite que vinha.
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Rafael mora no centro. Há algumas semanas, acalento a hipótese de fazer o mesmo. É uma opção, um gesto largo. Estou pensando e digerindo o assunto - a caminhada foi parte do processo. Solvitur ambulando. Ao chegar em sua casa, conversei longamente com Rafael sobre isso, e Rubem Fonseca se intrometeu. Ele sempre se intromete em nossas conversas, mesmo quando o assunto não tem absolutamente nada a ver com morar no centro. É um amor incondicional esse que sentimos pelo velho. Sempre gostamos de imaginá-lo com o chapéu a tapar metade de sua cara dizendo ao passar pela soleira da porta: "vou à cidade." É bacana ter a literatura como algo que te ligue profundamente a alguém. Muitos casais tem sua música, mas diferentemente das amizades entre homens, os casais se desfazem e as músicas ou se tornam obsoletas, ou viram tabu. Minha amizade com Rafael é precisa e econômica como a literatura de Rubem Fonseca, e terá vida longa, independentemente de onde estejamos morando.
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A coincidência, se obra do acaso ou algo divino, sempre é um presente. E enquanto escrevia esse texto, me veio à memória - que já começa a sofrer efeitos das muitas pátinas do tempo - que o primeiro assunto que fez com que nossa amizade se abrisse - minha com Rafael - foi justamente sobre ruas, apartamentos, aluguéis, bairros. Ele vivia há alguns anos no Rio,vindo de Barra Mansa. Eu acabara de chegar de Petrópolis. Tempos depois, achei um apartamento no Catete. Nossa amizade já estava estabelecida. Ele me perguntou a rua em que eu iria morar . "Bento Lisboa." Ele torceu o nariz. "É um pouco caída, explicou." Mas me deu os parabéns por eu ser, em suas palavras, o " mais novo habitante da cidade do Rio de Janeiro."
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Hoje pela manhã caminhamos juntos pelo centro, buscando apartamentos em ruas mais do que caídas. Rubem Fonseca nos ajudou a ver a elegância da decadência. Nos últimos anos,viramos adultos, assalariados, sem dinheiro e paciência para a Zona Sul, apesar de suas maravilhas, entre elas um certo Rubem Fonseca que toma seu café todas as manhãs numa padaria do Leblon. Ainda não sei se vou morar no centro. Meu amor pela Cidade não precisa de provas. Ele é o mais antigo. É com o centro do Rio que um Petropolitano primeiro se relaciona . De tempos em tempos, meu pai tinha que vir ao tribunal de justiça. Era permitido faltar aula nesses dias. Pelas mãos dele eu vi pela primeira vez os camelôs da São José e as mulheres de calça social e salto e um quê que mesmo menino eu diferenciava do que via por lá.
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Ontem, alta madrugada e muitas cervejas, eu e Rafael tivemos um breve diálogo em que eu imitei meu pai e ele seu. Foi engraçado mas assustador. Foi uma alucinação. Nossos pais não se conhecem. Mas não precisa. Eles falam por meio de nós dois, como as letras de Rubem Fonseca reverberam o vento da Álvaro Alvim, e como ao caminhar em silêncio pelo centro eu e Rafael conversamos com Rubem Fonseca. Não é preciso também que se vá ao Leblon.