segunda-feira, 7 de junho de 2010

Peso e medida


Carrego há quase sete anos uma doença, uma espécie de AIDS metafísica, uma osteoporose que me fragmenta os ossos da alma, torna meus músculos fracos, entala na minha garganta o grito de dor - que não é mais do que o grito de liberdade. Sai, aqui e ali, um zumbido de pavor. Às vezes, como tudo sempre escapa, assoma-me frente ao nariz uma poeirinha de liberdade. Corro atrás como um desesperado, mas ela se esfumaça como as galinhas pretas da minha infância. Você sabe o que é uma galinha preta ? É um balão precário, de jornal, que a gente faz; ele alça vôo irrisório, risível, e se desmancha a menos de dez metros de altura. O vírus que carrego no espírito e habita meus pensamentos é mutante. Se vale da própria estrutura e lógica do pensar para fazer seu sistema. Dor aguda é fácil, eu sei: são como pontadas que ao mesmo tempo nos magoam e afogam. Já senti. Angústia aguda, essa que carrego e que e que se torna mais profunda sendo mais íngreme, essa é para poucos...

Eu vinha com essas idéias, Dinda, quando vieram bater-me a porta. Eu via televisão, estava escuro, e algum cobertor e umas latas de cerveja sobre a mesa de centro me jogavam no fundo de um oceano americano. Bukowski ? Kerouac ? Eu não sei, Dinda.

Eu vinha com essas idéias, mas nunca levantava para anotá-las. Foi quando vieram bater-me a porta. Eu levantei pesaroso. Campainha a mais, ou a menos, não representava aborrecimento maior do que os aviões que insistem em passar sobre a minha casa. Eu sou burro, Dinda, eu sei, mas você conhece sujeito que por acaso vai alugar casa e fica pensando se ali é rota de avião ? O aeroporto fica uns três bairros mais pra lá, mas aqui eles fazem uma curva, um não sei quê. Deve ter cruza de meridiano com paralelo bem aqui em cima. Pra quem gosta dessa coisa de energia, é prato cheio. Nem sei. Sei que vieram me chamar e não foi “causo dum bezerro dos olhos de nem ser se viu”, como no livro lá do homem. Mas vai olhando, que tem bicho na história.

Eu abri a porta. Poderia descrever primeiro a escuridão, criar clima, mas ela nem existia, tamanho volume que vi ante meus olhos: cintilante, enorme, azul. Era um Boi brilhoso, boi de folclore. Não esperava coisa dessa na cidade, Dinda. Não esperava e acho que em lugar nenhum do mundo se espera coisa dessas na porta da casa da gente. Eu fiquei olhando. O Boi balançava pra lá, pra cá, chacoalhava seus penduricalhos, balançava seus chocalhos. Eu só olhava, sem fazer pose. Ele arriscou uns mugidos, correu meio desencontrado. Ameaçava entrar casa a dentro, recuava. O Boi sapateava na terra com seus quatro-pés-sambistas. Uma caçamba solta no espaço viajando em filme de Stanley Kubrick. Acho que durou uns vinte minutos, ou uns vinte segundos a cena. O boi balançou, balançou, balançou e depois cansou. Desceram a carcaça. Eram os meus dois amigos, o Rômulo e o Rafael. Eles arriaram a carcaça no chão e saíram meio de banda. Dinda, eles estavam bêbados e tontos. Um suor bonito escorria da cara do Rafael. Os olhos dele, miúdos, brilhavam na escuridão, dançavam feito o Boi. O Rômulo, como de costume, babava, exibia os dentões. Usava uma fantasia, um chapéu, parecia um palhaço saído de série de Luiz Fernando Carvalho. E ele faz aqueles trejeitos todos. O Rafael saiu de lado, mostrou a carcaça. O Rômulo fez um gracejo de mestre sala, ajoelhou e apontou. Era o grand finale:

- Você tá com medo de quê, Espantalho ? - foi isso que me perguntou o Rafael, Dinda.