O dia em que o gringo se ajoelhou diante de mim
O mural da faculdade onde estudei é universo maior do que qualquer portal de Internet, enciclopédia online, youtube, ou biblioteca borgiana. Ainda hoje, quando assombro a velha escola, é diante dele que paro, absorto. Mais do que por saudosismo, paro em busca de respostas. Foi a partir dele, em diversos momentos, que algumas estradas se abriram.
Durante o curso, eu lia todos os dias os anúncios do mural. Nele podia estar seu primeiro estágio, seu décimo companheiro de apartamento, a festa da próxima semana, um grupo de Somaterapia, o convite para uma peça de teatro, o anúncio do Movimento Gay Universitário, a convocatória para a missa do Movimento Católico Universitário, ou simplesmente a caricatura mal feita de um professor. Era quase certo também que lá estivesse algum anúncio com um erro crasso de Português, que alguém corrigia a caneta, sem nunca esquecer de deixar uma piada sobre as qualidades literárias do escriba. Foi neste mural que no primeiro período encontrei a seguinte frase “Preciso professor para Português".
Naquela época, eu precisava mais do que ninguém de um professor de Português, como ainda hoje eu o mundo precisamos, mas precisando também de dinheiro, arranquei o papel do mural, e fui para casa. James Scott Zimmerman é hoje um grande amigo, e costuma contar para todos que fui quem lhe ensinou a falar Português. Não mereço o crédito. Scott é de uma inteligência espantosa. De todo modo, sua voz rouca e sua fala cadenciada foram meu cartão de visitas pelos albergues e bares de estrangeiros da cidade durante muito tempo.
O segundo aluno que tive foi um inglês chamado Alex. Seu único objetivo com relação à língua era se comunicar com a namorada brasileira. As primeiras aulas foram desanimadoras. Ele não possuía a muleta sempre útil do espanhol, e quanto ao Português, suspeito que tenha lhe ensinado a primeira palavra. De minha parte, eu não possuía nem método nem didática, mas usei a paciência como minha aliada. Um dia, ao fim de uma aula em que ele se saíra muito bem, Alex se ajoelhou diante de mim, e com as mãos postas me disse: “Obrigado, Pedro, estou conseguindo falar com minha namorada.” Fiquei surpreso e comovido.
Nunca mais vi Alex. Provavelmente partiu para o Reino Unido levando a namorada e meia dúzia de palavras em Português, que já esqueceu. Mas nunca vou me esquecer daquela cena. É dela que tiro a coragem para reescrever um texto quantas vezes for necessário. É ela que me faz ir ao dicionário cada vez que tropeço numa palavra ao ler um romance. É a partir do gesto de Alex que tenho ânimo para estudar novas línguas.
Eu vi e pude compreender o desespero e a fragilidade do homem diante da impossibilidade de se expressar, falar de si, falar aos outros, gritar ao mundo. O homem quer e tem direito de falar de sua dor, seja ela fome, miséria ou amor. O homem quer os instrumentos e nem sempre é possível buscá-los sozinho. Não é preciso um oráculo, um mestre, um Cumpadi meu Quelemém, que tem sempre as palavras certas. É preciso alguém que saiba se inventar, e inventar alguém consigo. É preciso professor para Português.
É em Alex que penso toda vez que não sei o que dizer diante do mundo ou diante dela. E imitando seu gesto, toda vez que chego ao ponto final de um livro, digo de joelhos e mãos postas: obrigado, João, obrigado Fernando, obrigado Joaquim, obrigado João Cabral, obrigado Carlos, obrigado Erico, obrigado Luís Fernando, obrigado José, obrigado Hélio, obrigado Fiódor, obrigado Jack, obrigado Gabriel, obrigado Miguel, obrigado Ziraldo, obrigado Jorge, obrigado John, obrigado James, obrigado Alfredo, obrigado Ernest, obrigado Humberto, obrigado Ferreira, obrigado Manuel...