quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Crônica de Segunda


O dia em que o gringo se ajoelhou diante de mim



O mural da faculdade onde estudei é universo maior do que qualquer portal de Internet, enciclopédia online, youtube, ou biblioteca borgiana. Ainda hoje, quando assombro a velha escola, é diante dele que paro, absorto. Mais do que por saudosismo, paro em busca de respostas. Foi a partir dele, em diversos momentos, que algumas estradas se abriram.

Durante o curso, eu lia todos os dias os anúncios do mural. Nele podia estar seu primeiro estágio, seu décimo companheiro de apartamento, a festa da próxima semana, um grupo de Somaterapia, o convite para uma peça de teatro, o anúncio do Movimento Gay Universitário, a convocatória para a missa do Movimento Católico Universitário, ou simplesmente a caricatura mal feita de um professor. Era quase certo também que lá estivesse algum anúncio com um erro crasso de Português, que alguém corrigia a caneta, sem nunca esquecer de deixar uma piada sobre as qualidades literárias do escriba. Foi neste mural que no primeiro período encontrei a seguinte frase “Preciso professor para Português".

Naquela época, eu precisava mais do que ninguém de um professor de Português, como ainda hoje eu o mundo precisamos, mas precisando também de dinheiro, arranquei o papel do mural, e fui para casa. James Scott Zimmerman é hoje um grande amigo, e costuma contar para todos que fui quem lhe ensinou a falar Português. Não mereço o crédito. Scott é de uma inteligência espantosa. De todo modo, sua voz rouca e sua fala cadenciada foram meu cartão de visitas pelos albergues e bares de estrangeiros da cidade durante muito tempo.

O segundo aluno que tive foi um inglês chamado Alex. Seu único objetivo com relação à língua era se comunicar com a namorada brasileira. As primeiras aulas foram desanimadoras. Ele não possuía a muleta sempre útil do espanhol, e quanto ao Português, suspeito que tenha lhe ensinado a primeira palavra. De minha parte, eu não possuía nem método nem didática, mas usei a paciência como minha aliada. Um dia, ao fim de uma aula em que ele se saíra muito bem, Alex se ajoelhou diante de mim, e com as mãos postas me disse: “Obrigado, Pedro, estou conseguindo falar com minha namorada.” Fiquei surpreso e comovido.

Nunca mais vi Alex. Provavelmente partiu para o Reino Unido levando a namorada e meia dúzia de palavras em Português, que já esqueceu. Mas nunca vou me esquecer daquela cena. É dela que tiro a coragem para reescrever um texto quantas vezes for necessário. É ela que me faz ir ao dicionário cada vez que tropeço numa palavra ao ler um romance. É a partir do gesto de Alex que tenho ânimo para estudar novas línguas.

Eu vi e pude compreender o desespero e a fragilidade do homem diante da impossibilidade de se expressar, falar de si, falar aos outros, gritar ao mundo. O homem quer e tem direito de falar de sua dor, seja ela fome, miséria ou amor. O homem quer os instrumentos e nem sempre é possível buscá-los sozinho. Não é preciso um oráculo, um mestre, um Cumpadi meu Quelemém, que tem sempre as palavras certas. É preciso alguém que saiba se inventar, e inventar alguém consigo. É preciso professor para Português.

É em Alex que penso toda vez que não sei o que dizer diante do mundo ou diante dela. E imitando seu gesto, toda vez que chego ao ponto final de um livro, digo de joelhos e mãos postas: obrigado, João, obrigado Fernando, obrigado Joaquim, obrigado João Cabral, obrigado Carlos, obrigado Erico, obrigado Luís Fernando, obrigado José, obrigado Hélio, obrigado Fiódor, obrigado Jack, obrigado Gabriel, obrigado Miguel, obrigado Ziraldo, obrigado Jorge, obrigado John, obrigado James, obrigado Alfredo, obrigado Ernest, obrigado Humberto, obrigado Ferreira, obrigado Manuel...

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Crônica de Segunda



As coisas e o porquê das coisas



Perguntaram a Edmund Hilary - primeiro homem a subir e a descer do cume do Everest - por que os homens escalam montanhas. A resposta foi lacônica:

- Porque elas estão lá.

Wolfgang Gülich, outro grande escalador, reeditou a frase na década de 80. Um repórter lhe perguntou por que escalava, ao que ele respondeu:

- Porque é divertido.

Perguntaram a João Ubaldo Ribeiro sobre a decisão de ser escritor:


- Eu acredito que é muito feio uma pessoa não exercer uma atividade para a qual Deus lhe destinou talento.

De minha parte, escalo porque é divertido e as montanhas estão lá, mas escrever não é agradável. As palavras não estão em lugar algum.

Seria presunção demais crer que Deus me deu algum talento para a escrita. Acho que nunca, em vida, vou ter certeza disso. Mas como também não posso ter certeza de que Deus existe, escrevo.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Literatura de Quinta

Kiwi

Só agora, depois de perceber o quanto o queijo gorgonzola é salgado, me arrependo de ter pedido um crepe. Ele estava a menos da metade, quando chegou o suco de Kiwi. Só agora, lembrei de Augusto. Talvez tenha passado os últimos vinte anos sem lembrar de sua existência. Pensei numa tarde, eu devia ter dez anos. Falávamos sobre frutas no recreio. Eu disse que gostava de Kiwi. Passou uma ou duas semanas, o Augusto me veio com a pergunta. No domingo, a família havia comprado Kiwi, mas não soube comê-los. Como lembrara que eu gostava da fruta, queria saber se Kiwi era comido com ou sem casca. Não soube respondê-lo. Nunca tinha comido Kiwi. A história, na conversa anterior, havia sido mais uma das mentiras despretensiosas que se conta na infância.

Só agora, tomando em grandes goles o suco de Kiwi, acho um pouco mais pretensiosa a pergunta de Augusto. Não que tenha partido dele. Era um garoto tranqüilo. Mas talvez o pai, querendo me provar, apurar aquela história. Como o filho da faxineira do Dom Silvério poderia comer Kiwi? Eram essas as pequenas coisas que separavam nós, filhos dos empregados, deles, que pagavam a mensalidade. As grandes coisas, às vezes, eram transponíveis: eu estudava no melhor colégio da cidade. Mas era filho da faxineira, e nunca tinha comido Kiwi.

Só agora, gostaria de encontrar Augusto. Talvez uma buzinada. Quem sabe, chamá-lo para um almoço, servir de sobremesa uma grande tigela de Kiwi, e devorá-los com casca. Mas ele não deve se lembrar do que aconteceu. Minha mãe sempre dizia que eu era como os grandes arquivos do colégio, onde os padres guardavam fichas de várias gerações de alunos. Mas até os arquivos, apesar da mania de precaução dos padres, eram esvaziados de vez em quando daquilo que não lhes era mais essencial.

Só agora, com a família viajando, eu comia sozinho e pensava. O crepe chegou ao fim. Só agora, sorvo o resto do suco que se acumula junto da espuma, no fundo do copo, sem temer as reações que o barulho possa provocar no restaurante. Sinto alguns caroços sobre a língua. Percebo que os Kiwis são parentes dos morangos, apesar de que estes são comeidos com casca. Peço a conta, e volto pra casa.

MicroPoema ilustrado sobre a tristeza,

ou Como o deus Futebol negocia com parcimônia as alegrias e frustrações que distribui.

"O GOL DE CANIGGIA
FOI MEU PRIMEIRO GOL DE GIGGHIA.
DEPOIS VIERAM OUTROS MAIS."