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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Literatura de Quinta

Kiwi

Só agora, depois de perceber o quanto o queijo gorgonzola é salgado, me arrependo de ter pedido um crepe. Ele estava a menos da metade, quando chegou o suco de Kiwi. Só agora, lembrei de Augusto. Talvez tenha passado os últimos vinte anos sem lembrar de sua existência. Pensei numa tarde, eu devia ter dez anos. Falávamos sobre frutas no recreio. Eu disse que gostava de Kiwi. Passou uma ou duas semanas, o Augusto me veio com a pergunta. No domingo, a família havia comprado Kiwi, mas não soube comê-los. Como lembrara que eu gostava da fruta, queria saber se Kiwi era comido com ou sem casca. Não soube respondê-lo. Nunca tinha comido Kiwi. A história, na conversa anterior, havia sido mais uma das mentiras despretensiosas que se conta na infância.

Só agora, tomando em grandes goles o suco de Kiwi, acho um pouco mais pretensiosa a pergunta de Augusto. Não que tenha partido dele. Era um garoto tranqüilo. Mas talvez o pai, querendo me provar, apurar aquela história. Como o filho da faxineira do Dom Silvério poderia comer Kiwi? Eram essas as pequenas coisas que separavam nós, filhos dos empregados, deles, que pagavam a mensalidade. As grandes coisas, às vezes, eram transponíveis: eu estudava no melhor colégio da cidade. Mas era filho da faxineira, e nunca tinha comido Kiwi.

Só agora, gostaria de encontrar Augusto. Talvez uma buzinada. Quem sabe, chamá-lo para um almoço, servir de sobremesa uma grande tigela de Kiwi, e devorá-los com casca. Mas ele não deve se lembrar do que aconteceu. Minha mãe sempre dizia que eu era como os grandes arquivos do colégio, onde os padres guardavam fichas de várias gerações de alunos. Mas até os arquivos, apesar da mania de precaução dos padres, eram esvaziados de vez em quando daquilo que não lhes era mais essencial.

Só agora, com a família viajando, eu comia sozinho e pensava. O crepe chegou ao fim. Só agora, sorvo o resto do suco que se acumula junto da espuma, no fundo do copo, sem temer as reações que o barulho possa provocar no restaurante. Sinto alguns caroços sobre a língua. Percebo que os Kiwis são parentes dos morangos, apesar de que estes são comeidos com casca. Peço a conta, e volto pra casa.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Literatura de quinta

Alaranjados e Vermelhos

Ela nem reparou, mas os dois peixes do aquário têm a cor de seu cabelo. Passa na sala todos os dias, senta no sofá, coloca as meias, o tênis, e sai. Muito mais fácil colocar a calça depois das meias, o algodão desliza melhor pelo jeans do que os pés nus, ainda um pouco molhados do banho. Mas a janela da sala não tem cortinas, e ela sempre esquece de levar as meias para o banheiro. Por isso, já vestida, anda até a sala com a toalha nas mãos, senta no sofá, pega o par de meias que estava dentro do tênis, coloca as meias, o tênis, e sai. Às vezes olha para o aquário na estante, em cima da televisão, mas não reparou ainda que os peixes têm a cor de seu cabelo. São dois, entre alaranjados e vermelhos. Acho que se chama japonês esse tipo de peixe.

Ela não reparou. Desce despencando os três andares do prédio sem elevador, e na rua começa a aflição. Nada no Rio é tranqüilo. Mesmos nas atividades mais corriqueiras e prazerosas, como ir à praia, ou à padaria, sempre fica a sensação de que é preciso estar atento. A tensão não vem do que se lê nos jornais, ela mal tem tempo de ler os jornais, mas da própria cidade - não o Rio, mas a cidade que mora dentro dela, a cidade onde nasceu e viveu até os dezoito anos.

No começo, ruborizava por tudo. O pior dia, lembrança da qual ainda sente vergonha, foi quando pediu uma pipoca sem casca. Teve que aturar o pipoqueiro rindo, um riso debochado, que lhe doeu. Ficou entre alaranjada e vermelha. Da cor dos peixes e do cabelo, mas na época não tinha nem peixes nem cabelos pintados.

Hoje, os cabelos entre alaranjados e vermelhos, deslizam com mais facilidade nas ruas da cidade, mas, ainda assim, sem o conforto das meias vestidas antes de se colocar a calça jeans. Talvez só abandone a cidade dentro dela para viver na de agora quando encontrar na esquina um pipoqueiro que venda pipocas sem casca, que ela demorou dezoito anos para descobrir que só existem em Petrópolis. Ou quando alguém lhe mostrar que os dois peixes em cima da estante têm a cor de seus cabelos.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Literatura de quinta

A Maquina


Quando eu era menino, meu pai costumava pedir para que eu apagasse alguma luz que havia deixado acesa em casa bradando que não era sócio da Light. Isso numa época em que eu mal sabia o que era ser sócio e muito menos o que significava Light. Com o tempo, soube de outros amigos, que a bronca era a mesma na casa deles. Hoje, que bem sei o que é ser sócio, e tenho uma baita conta da Light para pagar todo fim de mês, fico me perguntando como deve ter sido a infância do filho do sócio da Light. Imagino um palacete iluminado, com imensas janelas de vidro, ostentando luz em meio às casas de um bairro alto, talvez o Valparaíso. Toda vez que o filho apagasse alguma luz acesa na casa, o pai lhe diria carinhosamente: “Precisa, não filho, papai é sócio da Light.”

Mas esse menino também tinha lá suas angústias. Muitos de seus amigos insistiam em dormir em sua casa, mas ele duvidava da honestidade da amizade deles. Poderiam ser interesseiros. Não por causa de seus brinquedos caros - no seu ciclo de amizade, todos eram filhos de algum tipo de sócio: seja de empreiteiras, multinacionais ou até mesmo de bancos - mas o filho do sócio da Light, às vezes, tinha a impressão de que os amigos só queriam ir à sua casa porque, como quase todos os meninos da sua idade, tinham medo do escuro.

Ele não, ele tinha medo é de claridade. No auge do verão, quando ia para a piscina do Petropolitano, tão logo o sol de meio-dia começava a devorar as sombras, ele telefonava pra casa e pedia para que a babá fosse buscá-lo. A preta, muitas vezes, pensava que ele era um menino problemático, triste. Mas tão logo chegava do clube, ele se refugiava nas sombras de uma mangueira nos fundos do quintal, e brincava a tarde toda.

Hoje, acabou a luz na empresa. Esperamos por quase três horas para que ela retornasse e nada. Quando o trabalho começou a se acumular sobre as mesas, um dos sócios teve uma idéia brilhante: foi até um armário nos fundos da garagem e retirou de lá quatro Remingtons empoeiradas. Ele sorriu triunfante. A idéia de guardar as máquinas, há mais de quinze anos, não fora coisa de velho, como disseram à época. Feliz como um menino que ganha um brinquedo novo, eu comecei a traduzir um documento para o consulado. O tec-tec que meus dedos produziam me fez sentir uma imensa saudade do meu pai.