Escrevi esse texto em março de 2007...
Azul
Quando se viu sozinho, com o fuzil na mão, no meio da rua de terra batida, o sargento J.Mauro teve a certeza de que a situação estava controlada. Todo o pelotão descansava, tentando dividir um resto de sombra que o sol de duas da tarde deixava na calçada em frente. Mauro passou pelos companheiros, e dobrou a esquina. A calma empoeirada da tarde lhe feria os olhos. Caminhou até o meio-fio, e sentou. Estava encharcado. Na loja vazia em frente, reconheceu um regador de zinco, pendurado de cabeça para baixo no teto. Desviou o olhar para as próprias botas, respingadas de lama, e teve vontade de chorar.
Ainda estava na mesma posição, só que com o capacete sobre o colo, quando vieram lhe chamar minutos mais tarde. Olhou para o capacete antes de colocá-lo na cabeça, e a cor lhe lembrou o giz que passava nos tacos de sinuca, nas tardes dos botecos da Rua São Clemente.
Era de uma superioridade inferior, foi o que pensou quando fechou os olhos para tentar dormir. No Haiti, de nada lhe adiantava ser mais alto e forte que os outros soldados, se lhe faltava a virilidade necessária para empunhar o cacetete na hora de afastar manifestantes exaltados, como havia acontecido naquela tarde.
O pelotão fora chamado às pressas para dar cobertura a cinco soldados que organizavam a fila do caminhão pipa, numa das partes mais pobres Cité Soleil. Devido ao atraso de mais de duas semanas, o conflito era iminente.
Minutos depois que chegou, quando o aglomerado de gente de todas as idades e sexos começava a tomar forma de fila, um negro alto, com as maçãs do rosto protuberantes, se deslocou do grupo e veio falar com ele. Quase tocando-lhe a cara com a ponta do nariz, o negro gritou para Mauro uma frase, da qual ele não entendeu uma só palavra. Em seguida, deu-lhe as costas, falou rapidamente com três senhoras que estavam no final da fila, e sumiu num beco.
Uma pedra caiu entre Mauro e dois soldados, e foi como um sinal para que a fila se desordenasse em paneladas, e empurrões. Mais de cinqüenta pessoas partiram para cima dos soldados, que tinha ordens explicitas de só atirar em último caso. Vendo que o grupo se entrincheirava atrás do caminhão, Mauro correu desesperadamente para atravessar a rua. A pressa ajudou a pedrada que recebeu nas costas a derrubá-lo de frente, com as costelas sobre o fuzil. Agüentou a dor, levantou, e continuou a carreira. Já atrás do caminhão, tentou achar no cinto uma bomba de gás lacrimogêneo, mas não encontrou. A chuva de pedras continuava, vinda do outro lado da rua.
A intifada parecia incontrolável, quando o caminhão pipa dobrou a esquina. A multidão como que se recobrou de um transe, e esquecendo os soldados, saiu correndo, catando panelas e bacias que pelo caminho.
Quando os moradores estavam próximos do caminhão, alguns já dando socos e tapas na lataria, um jato d’água derrubou três senhoras no chão. Em pé, em cima do caminhão, um soldado empunhava uma mangueira. De onde estava, Mauro pôde ouvi-lo gritar:
- Vocês não querem água, seus filhos da puta, então toma água.
O soldado segurava a mangueira com as duas mãos, abaixo da barriga, simulando um grande pênis que urinava na multidão.
- Toma água, seus filhos da puta.
O grupo de moradores avançou furioso, engrossado pelas pessoas que saíam das casas e lojas ao redor. O pelotão não teve outra opção, senão abrir fogo. Aos primeiros disparos, a multidão se dispersou aos berros, e em menos de um minuto, a rua que antes era palco de um estrondoso conflito, ficou deserta. O caminhão pipa desligou o motor. De pé, bem no centro da rua, sozinho, agarrado ao fuzil, estava o sargento J. Mauro.