Turvo turva a turva mão do sopro contra o muro. A frase lançou-se como uma besta em disparada, correndo a cabeça de José Eduardo assim que ele se levantou. Com os pensamentos encurtados por uma ressaca feroz, o verso bateu de lado a lado em seu cérebro, como uma bola de pinball, até cair morto no buraco negro do esquecimento. Era sábado.
Aos poucos, os fragmentos da noite anterior foram invadindo sua mente, todos, de uma forma ou de outra, feitos de pequenas humilhações: uma cantada frustrada numa menina, um discurso pífio, sobre um assunto que ele mal dominava, a tentativa de recitar, de cor, um poema, e por fim, claro, o telefonema, choroso e bêbado, para o celular de Maria Emília. Cada fracasso que rememorava intensificava sua dor de cabeça. Sentia-se rejeitado, envergonhado, entristecido, e sobretudo, inútil.
Na coleção de frustrações, a que mais lhe magoava era história dos poemas. Gastava as madrugadas a ler tudo que lhe caía nas mãos, e não conseguia decorar mais do que primeiros versos de qualquer poema. Não posso mover meus passos por esse atroz labirinto de cegueira em que amores e ódios vão; Stamos em pleno mar...Doudo no espaço brinca o luar; Vi ontem um bicho, na imundice do pátio, catando comida entre os detritos.
Ainda de pé, ao lado da cama, lembrou-se de Gabão. Foi numa noite escura, no pátio da faculdade, quando ainda era calouro. Gabão sentou-se no meio de uma roda, e algum dos veteranos olhou em volta, pedindo um cigarro. Gabão pegou o cigarro, tirou do bolso um isqueiro, e com calma, começou: não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada. Ao cabo de quinze minutos, havia recitado Tabacaria inteira, sem pausas ou erros, fazendo uma encenação minimalista dos versos.
Foi a primeira vez que José Augusto ouviu o poema. Era uma quinta-feira. No sábado, recebeu a carta em que Maria Emília dava por terminado o namoro. No domingo, em visita a mãe, falou-lhe de Pessoa. Ela buscou na estante um livro velho, de bolso, onde entre outros poemas, estava Tabacaria. José o leu três vezes durante a tarde, e ao cair da noite, sentia-se infinitamente mais triste, porém muito mais calmo e resignado. Dois anos depois, soube que Gabão havia se suicidado. Ele não era aluno da faculdade de Educação, como tinham falado. Era um dos tantos pacientes psiquiátricos que passeavam livremente pelo campus.
Naquela manhã de sábado, de ressaca, José Eduardo, com um sorriso triste, esboçou, sem perceber, o parágrafo de conclusão do livro de angustias que há tantos anos vinha escrevendo com o próprio cotidiano: com ironia e carinho pensou que talvez Gabão tivesse chegado ao fim de sua cota de Tabacarias. Que talvez estivesse reservada aos homens apenas uma determinada quantidade de vezes em que poderiam declamar de cor o poema. Era como atingir o sublime, a plenitude. Era a morte que se antevê no gozo extremo, na cura completa da dor, na calcificação das fraturas de que somos feitos. É a linha reta que se atinge após se desfazerem todos os nós que embolam a corda que somos. É o fim, e José Eduardo ainda estava começando.
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