segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Assim falou Lara Leal

Estávamos vendo televisão quando aparece a já lendária imagem de Baggio batendo o pênalti para fora na final da Copa de 94. Minha irmã não mais que de repente diz:

" Pior que esse cara vai ficar marcado por ter feito essa merda com esse cabelo".

Faz sentido. É provável que ele não sonhe em repetir a cobrança. Já uma passadinha no barbeiro antes da derradeira partida, se pudesse voltar no tempo...

sábado, 14 de novembro de 2009

Solvitur ambulando - morar no centro

Os velhos, quando vão ao centro, dizem: vou à cidade. Eu debocho, às vezes, dos velhos. Ontem, não. Imbuído da missão de buscar um apartamento, fui deixado na porta do Globo, na Cidade Nova. Vim em direção à Lapa costurando a Riachuelo pelas ruas do Bairro de Fátima. Vi uma cidade diferente, uma Lapa com cores mais suaves, gente mais viva. Na Cinelândia, finalmente parei. Saquei da Mochila o novo romance de Rubem Fonseca, que vem acompanhado de uma edição especial da " Arte de andar pelas ruas do Rio de Janeiro". Não foi coincidência. Sai de casa pensando em ler o conto em algum momento de minha caminhada. (Isso a que chamam de hipertexto, ou convergência de linguagens, eu faço há muito tempo com a literatura).

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Li um pedaço do conto e recebi uma ligação de Rafael. Caminhei em
direção à Almirante Barroso e segui em linha reta para sua casa. Dessa vez, foi coincidência, mas acabei por fechar um quadrilátero em volta de uma área do centro, tal qual imaginava o personagem de Rubem. Vou à cidade, dizem os velhos. É de fato uma cidade. Zona Portuária, Cinelândia, Carioca, Lapa - os muitos bairros, as muitas gentes. E a pátina do tempo, diria ela. Ou o tempo tempo, sem pátina, em vôo alucinado por uma Álvaro Alvim de sonho, em que a chuva ameaçava com pingos grossos os pombos tardios da noite que vinha.

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Rafael mora no centro. Há algumas semanas, acalento a hipótese de fazer o mesmo. É uma opção, um gesto largo. Estou pensando e digerindo o assunto - a caminhada foi parte do processo. Solvitur ambulando. Ao chegar em sua casa, conversei longamente com Rafael sobre isso, e
Rubem Fonseca se intrometeu. Ele sempre se intromete em nossas conversas, mesmo quando o assunto não tem absolutamente nada a ver com morar no centro. É um amor incondicional esse que sentimos pelo velho. Sempre gostamos de imaginá-lo com o chapéu a tapar metade de sua cara dizendo ao passar pela soleira da porta: "vou à cidade." É bacana ter a literatura como algo que te ligue profundamente a alguém. Muitos casais tem sua música, mas diferentemente das amizades entre homens, os casais se desfazem e as músicas ou se tornam obsoletas, ou viram tabu. Minha amizade com Rafael é precisa e econômica como a literatura de Rubem Fonseca, e terá vida longa, independentemente de onde estejamos morando.

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A
coincidência, se obra do acaso ou algo divino, sempre é um presente. E enquanto escrevia esse texto, me veio à memória - que já começa a sofrer efeitos das muitas pátinas do tempo - que o primeiro assunto que fez com que nossa amizade se abrisse - minha com Rafael - foi justamente sobre ruas, apartamentos, aluguéis, bairros. Ele vivia há alguns anos no Rio,vindo de Barra Mansa. Eu acabara de chegar de Petrópolis. Tempos depois, achei um apartamento no Catete. Nossa amizade já estava estabelecida. Ele me perguntou a rua em que eu iria morar . "Bento Lisboa." Ele torceu o nariz. "É um pouco caída, explicou." Mas me deu os parabéns por eu ser, em suas palavras, o " mais novo habitante da cidade do Rio de Janeiro."

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Hoje pela manhã caminhamos juntos pelo centro, buscando apartamentos em ruas mais do que caídas.
Rubem Fonseca nos ajudou a ver a elegância da decadência. Nos últimos anos,viramos adultos, assalariados, sem dinheiro e paciência para a Zona Sul, apesar de suas maravilhas, entre elas um certo Rubem Fonseca que toma seu café todas as manhãs numa padaria do Leblon. Ainda não sei se vou morar no centro. Meu amor pela Cidade não precisa de provas. Ele é o mais antigo. É com o centro do Rio que um Petropolitano primeiro se relaciona . De tempos em tempos, meu pai tinha que vir ao tribunal de justiça. Era permitido faltar aula nesses dias. Pelas mãos dele eu vi pela primeira vez os camelôs da São José e as mulheres de calça social e salto e um quê que mesmo menino eu diferenciava do que via por lá.

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Ontem, alta madrugada e muitas
cervejas, eu e Rafael tivemos um breve diálogo em que eu imitei meu pai e ele seu. Foi engraçado mas assustador. Foi uma alucinação. Nossos pais não se conhecem. Mas não precisa. Eles falam por meio de nós dois, como as letras de Rubem Fonseca reverberam o vento da Álvaro Alvim, e como ao caminhar em silêncio pelo centro eu e Rafael conversamos com Rubem Fonseca. Não é preciso também que se vá ao Leblon.


quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Fragmento de um relatório de viagem intergalática

Sistema solar 11, planeta 3

- São Bárbaros. Ainda fabricam fuzis.

Sobre o tempo

A ela

cabe perceber que quanto mais cresce, mais suas calcinhas diminuem

E ele cabe o absurdo de ver o camisa dez de seu time,
seu ídolo, um menino. dois anos mais moço

A ele e a ela cabe:

ela vestida de calcinha larga,

ele desiludido pelo último Brasileiro de seu time,

descobrirem juntos que as farmácias, mercearias e estacionamentos do bairro em que moram

eram cinemas,
que os dois frequentaram.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Diálogos com o mestre Paschoal

- Sabe o que eu acho ? A gente deveria investir nessa história de morte de celebridade decadente. Ingresso para o velório do Michael Jackson custou 17 mil dólares. Estava pensando em matar o Axl Rose. A gente poderia fazer a turnê mundial do velório dele.
- Pode crer.

Diálogos com o mestre Rodolfo

- Você vai em alguma coisa do Festival do Rio ?
- Não tô com muito saco pra negócio de festival.
- É, nem eu.
- Acho que eu não gosto de mais nada. Só da menina nova, lá do trabalho.
- É, a gente só gosta de mulher mesmo... e isso já é o suficiente para ser muito feliz e muito triste...rs

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Idéias

Agora, tive cinco idéias que julguei geniais e que certamente podem me deixar milionário. Logo, conclui que devo usa-las uma a uma, para que possa ficar milionario cinco vezes, mas perder tudo quatro. Ao final, milionário por conta da quinta idéia, teria a sexta - que tive agora - que era a de escrever um livro sobre como fiquei milionário cinco vezes e perdi tudo quatro. Com o livro, ficaria outra vez milionário e portanto, antes disso, poderia pela quinta vez perder tudo. Por fim, tive a sétima idéia: escrever sobre isso em meu blog. Acabo de faze-lo, e com essa sétima idéia, fiquei pobre, como estou. Por fim mais uma vez, tive medo de perder tudo, caso o computador desse pau- o que tambem julguei ser uma ideia. Desse modo, perdi tudo e ganhei tudo o mesmo numero de vezes.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Tristeza

Sigo em busca de um verso que me salve. Sigo sem solução. Busco canções, vídeos, graça. A alma às vezes me falta - ou será que falto eu à alma ? Corro demais - ou será que corro em pensamento, enquanto deixo ao léu, ao vento, as verdades que me acolhem ? Olha, e como doem.

Sou eu, meu pensamento, e só. Escuro, mais do que a noite, estamos nós, meus livros, eu, minha estante. Nessa hora, desisto: não quero mais ser Bach, não quero ser
Jimmy Hendrix. Mas sei que isso passa e voltarei a desejar ser maior do que o mundo, embora não saiba medi-lo nem da porta de casa pra dentro.

Talvez, se tivesses atendido ao meu pedido, esse texto amargo não me saísse.

Talvez, se saísses como eu desejo, esse texto não pediria para existir, existindo para além de mim, de minha mão, de meus versos, além mar.

São nove e meia e podia ser São Vicente. São estrelas cadentes e poderiam ser decadentes postos de gasolina na beira da estrada. São peixes, são notórios doutores. São saberes. Sabem à sombra e à infância. São focos, luz, são Francisco, Caio,
Arthur - e eu, o que sou ? Sou nada. Minha vida inteira é gaga.

Há salada na geladeira. É, eu sei, eu tenho a vida inteira. Mas a vida inteira passa. Olho pra tela sem graça: me olham
Hendrix e Bach.

Como os credito ?

Artistas por Deus
gentilmente cedidos ?

mas não teriam sido eles a me ceder Deus ?

Paro um
instante entre o fracasso e a ressaca: viver não quer dizer nada. Não somos mais do que fomos. Emaranhado de dores, arame farpado de amores, desilusões em cardume, amostra grátis do cosmos.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Dia D


Só hoje percebi

que quando a gente fala,

muito pouco separa

desistir de existir.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Era pra ser seu nome aqui


Felicidade,
eu acho que é essa vontatade que eu tenho, de vez em quando,
de usar roupa puída e abraçar menina magrinha.

Por mim, você andava sempre de sapatilha, mas chove, eu sei.
E quando seca, é o que eu digo, me dá essa vontade
de pegar uma camiseta branca, púida, passada e lavada
e te dar um abraço e um beijo no rosto.

Já viu como é preto o seu cabelo ? Os fios brancos aparecem demais...
Eu gosto mais das suas mãos quando estão de unhas vermelhas

Tem dia que eu torço para você, num gesto, levantar um pouco a blusa
e então eu vejo sua barriga

É bem como eu disse:
a felicidade, é essa vontade que eu tenho,
de usar roupa puída e abraçar menina magrinha

segunda-feira, 27 de julho de 2009

O Amor nos tempos da Gripe

Não era preciso dizer que já não se beijavam. Usavam máscaras o tempo todo. Às vezes trocavam as máscaras, mas se habituaram de tal modo a ver apenas a metade do rosto um do outro que não percebiam as mudanças. Evitavam se esbarrar, e quando acontecia, trocavam por sobre as máscaras olhares tristes e ameaçados.

Não saberiam dizer quando começou. No início, pensavam apenas nas crianças. Talvez eles nos contagiem, pensava ele, nos momentos de medo. Ela, por sua vez, estava resoluta: era preciso sim pensar nas crianças, mas a melhor forma de fazê-lo era sendo forte, para protegê-los. Viviam como reservistas, aguardado a inevitável convocação para uma guerra já perdida.

Ela sentiu os primeiros sintomas. A falta de apetite, a letargia, as dores culminaram num estado febril, que com serenidade, ela esperou passar. Não podia dar a notícia assim, sem ter ela própria a digerido. Além de tudo, do jeito que se encontrava, poderia cometer injustiças. Sempre flutuou por sua mente a idéia de que se a crise seria iniciada por ele. Toda vez que o via fraco, esse pensamento ganhava força. O melhor a fazer, portanto, era esconder os primeiros sinais. Seria o maior fardo de sua vida o remorso de fazê-lo crer, nem que fosse por um segundo, que ele era o único culpado.

A febre foi baixando, e ela aos poucos recobrou a velha lucidez. Só que agora, ela vinha acompanhada de uma resignação tranqüilizadora. Por fim, pensou que era inevitável, afinal eram os últimos entre amigos e conhecidos.

A febre baixou ainda mais um pouco, mas chegou a um estágio do qual não iria embora tão cedo. Não tinha mais o que esperar. Quanto mais demora, mais sofrimento. Ela respirou fundo, chamou as crianças, o marido, e com a voz ofegante e fraca falou:

- Eu sei que é difícil dizer isso a vocês, mas eu e seu pai estamos nos separando.

domingo, 19 de julho de 2009

Pausas

Polifonia, grosso modo, é simultaneidade de varias melodias, harmonicamente dispostas. Muitas
vezes, nas composições polifônicas, as frases musicais são independentes, constituídas de sentido quando cantadas ou tocadas em separado. Juntas, porém, o resultado estético se apresenta mais completo. A polifonia, na musica sacra, chegou a ser proibida por um Papa.

Desde que as bocas se encontraram, ainda no show, até a porta do apartamento, as pausas foram poucas. Pausa para pagar a conta, se despedir dos amigos. Pausa para pagar o ônibus, para achar a chave, e a abrir a porta. Pausa para colocar um disco.

Sob as melodias imbricadas do jazz, fluía um poderoso contraponto, a conta-gotas. Uma camisa, duas camisas. Uma mão, duas, quatro. Línguas e laços, e poucas histórias.

O embaraço, desembaraço:

-Ih, tem que virar o disco.
-Vinil tem essa desvantagem.

Dois mamilos, quatro. Dois umbigos. Línguas, lábios, laços.

O embaraço, desembaraço:

- A pior coisa da nossa geração é a camisinha.
- Tudo bem. A geração anterior não tinha que virar o vinil?

sábado, 27 de junho de 2009

Isso é Londres


Assim que soube que eu iria para Inglaterra, Lara, minha irmã, pediu uma lembrança que tivesse os Beatles como tema. Durante a tarde de hoje, caminhei em Camden Town, mas como chovia muito, não pude procurar com calma algum presente interessante. Quando dei por mim, as lojas estavam fechando e eu estava atrasado para o show de Neil Young, no Hyde Park.

Assim que cheguei, encontrei Magno estirado no gramado com dois amigos, bebendo cerveja. Não tínhamos ingresso, claro. Eles se esgotam tão logo um evento é anunciado. Mas tínhamos a imensidão do gramado, frestas na grade, e algumas cervejas.

Durante o show, a chuva ameaçou novamente, mas nada que tirasse o bom humor de meu amigo. "Isso é Londres", ele dizia. " Neil Young de graça e cerveja". Nas últimas músicas do show, um dos portões foi aberto. Embora não nos fosse permitido entrar, podíamos ouvir melhor as músicas e ver todo o palco. Estávamos em êstaxe. Isso é Londres, eu pensava. Como se fosse pouco, ao soarem os acordes iniciais do bizz, eu reconheci: Neil Young atacava de " A day in the life". Olhei para Magno. Estávamos emocionados.

No lugar dos violinos, guitarras fizeram o furacão sonoro que marca o auge da mais bela canção dos Beatles. Agora, sabia eu, faltava o despertador, e a parte que Paul McCartney canta. Magno pensava a mesma coisa, pois adiantou um verso, cantalorando: " I woke up..." De repente, ouvi uma voz conhecida, mas não era meu amigo. Olhei para o telão. "É o Paul Mcartney", falei. Então, novamente ouvi uma voz, mas era a minha mesmo, interna, gritando: "Corre, Espantalho".

Como um louco, sai em disparada portão a dentro. As duas guardas vieram atrás, e eu sentia suas mãos tentando me agarrar, mas era tarde demais: eu, Neil Young, Paul McCartney e a multidão cantávamos em coro: " I read the news today oh boy." Depois, soube que a minha inesperada reação tirou a segurança britânica um pouco dos eixos. Ao saírem correndo atrás de mim, as seguranças desguarneceram os portões e todo mundo me seguiu, Magno inclusive.

Uma noite, portanto, memorável. Isso é Londres, eu pensei, mas eu fiz igualzinho o que costumava fazer no pátio da Federal de Juiz de Fora ou no Circo Voador.

sábado, 20 de junho de 2009

Gastronomia Callejera




Depois de uma culinária de rua bastante tímida em Paris, finalmente Brugge. Quarenta molhos diferentes para sua batata frita, na praça principal.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Para todo mal a cura

Não sei se foi o tempo ou a poeira, mas minha alergia atacou com força por esses dias. Fui a uma farmácia em busca de um anti-histamínico, temendo que não me vendessem sem receita. Mas, como diz minha mãe, o que é bom para o Brasil, é bom para a França, e eis que me venderam Zyrtecset. Qual não foi minha surpresa quando li na caixa do remedinho que ele servia para Rinites, Conjuntivites Alérgicas e Crise de Urticária. Eu disse Conjuntivite e Crise de Uruticária, tudo com um remédio só! Tal qual Brás Cubas, almejo ficar rico exportando tal maravilha da farmacêutia moderna. Já estou a imaginar a propaganda nas rádios AM:

- Seu filho esbarrou na urtiga, ou coçou o olho com a mão suja, Zyrtecset é a solução.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Considerações sobre Paris

- No primeiro dia, apenas descansei. No segundo, tomei tanto vinho que acordei com a língua azul. Tenho medo de virar um Sharpei até o final da viagem.

- É mentira essa história de que os franceses não falam Inglês. Muitos falam, com exceção dos que trabalham na recepção dos Albergues e nos grandes pontos turísticos.

- A Sorbone é igual a Eco, mas acho que tem papel higiênico no banheiro.

- O metrô de Paris é análago ao cérebro de Voltaire ou Sartre; já o do Rio é como o do Sérgio Malandro ou do Maguila.

- Paris tem a melhor livraria (vide a primeira foto) e as mulheres mais bonitas do mundo, mas uma coisa realmente não tem nada a ver com a outra.

- Se existissem menos queijos, será que eles conseguiriam construir banheiros com privada, pia e chuveiro ?

- Hoje, em meio ao melancólico pôr-do-sol da segunda foto, me peguei cantando Roberto Carlos. Para minha vergonha - ou não - o cara que estava ao meu lado era brasileiro.

domingo, 7 de junho de 2009

Orientação para a viagem

1) Existem quatro pontos cardeais: Fortaleza, Bangu, Barra Mansa e Petrópolis.

2) Uma foto não é um processo físico-químico. Ela é a imagem de quem olha, quase sempre ausente. A foto acima é uma bela imagem do Rodolfo.

3) De tudo ao meu amor (próprio) serei atento. Serei comigo - e com os outros, - cortês como o Rodolfo, leal como Clodoaldo, paciente como Cagibrino.

4) Vou olhar por vocês.

Beijos

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Ressaca


Turvo turva a turva mão do sopro contra o muro. A frase lançou-se como uma besta em disparada, correndo a cabeça de José Eduardo assim que ele se levantou. Com os pensamentos encurtados por uma ressaca feroz, o verso bateu de lado a lado em seu cérebro, como uma bola de pinball, até cair morto no buraco negro do esquecimento. Era sábado.

Aos poucos, os fragmentos da noite anterior foram invadindo sua mente, todos, de uma forma ou de outra, feitos de pequenas humilhações: uma cantada frustrada numa menina, um discurso pífio, sobre um assunto que ele mal dominava, a tentativa de recitar, de cor, um poema, e por fim, claro, o telefonema, choroso e bêbado, para o celular de Maria Emília. Cada fracasso que rememorava intensificava sua dor de cabeça. Sentia-se rejeitado, envergonhado, entristecido, e sobretudo, inútil.

Na coleção de frustrações, a que mais lhe magoava era história dos poemas. Gastava as madrugadas a ler tudo que lhe caía nas mãos, e não conseguia decorar mais do que primeiros versos de qualquer poema. Não posso mover meus passos por esse atroz labirinto de cegueira em que amores e ódios vão; Stamos em pleno mar...Doudo no espaço brinca o luar; Vi ontem um bicho, na imundice do pátio, catando comida entre os detritos.

Ainda de pé, ao lado da cama, lembrou-se de Gabão. Foi numa noite escura, no pátio da faculdade, quando ainda era calouro. Gabão sentou-se no meio de uma roda, e algum dos veteranos olhou em volta, pedindo um cigarro. Gabão pegou o cigarro, tirou do bolso um isqueiro, e com calma, começou: não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada. Ao cabo de quinze minutos, havia recitado Tabacaria inteira, sem pausas ou erros, fazendo uma encenação minimalista dos versos.

Foi a primeira vez que José Augusto ouviu o poema. Era uma quinta-feira. No sábado, recebeu a carta em que Maria Emília dava por terminado o namoro. No domingo, em visita a mãe, falou-lhe de Pessoa. Ela buscou na estante um livro velho, de bolso, onde entre outros poemas, estava Tabacaria. José o leu três vezes durante a tarde, e ao cair da noite, sentia-se infinitamente mais triste, porém muito mais calmo e resignado. Dois anos depois, soube que Gabão havia se suicidado. Ele não era aluno da faculdade de Educação, como tinham falado. Era um dos tantos pacientes psiquiátricos que passeavam livremente pelo campus.

Naquela manhã de sábado, de ressaca, José Eduardo, com um sorriso triste, esboçou, sem perceber, o parágrafo de conclusão do livro de angustias que há tantos anos vinha escrevendo com o próprio cotidiano: com ironia e carinho pensou que talvez Gabão tivesse chegado ao fim de sua cota de Tabacarias. Que talvez estivesse reservada aos homens apenas uma determinada quantidade de vezes em que poderiam declamar de cor o poema. Era como atingir o sublime, a plenitude. Era a morte que se antevê no gozo extremo, na cura completa da dor, na calcificação das fraturas de que somos feitos. É a linha reta que se atinge após se desfazerem todos os nós que embolam a corda que somos. É o fim, e José Eduardo ainda estava começando.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Esta é uma carta de suicídio


Uma carta de suicídio de quem não agüenta mais ver as prateleiras de livros de auto-ajuda e dos antidepressivos vazias.

De quem não suporta mais ver os amigos trocarem os anos de rebeldia e doação pela impaciente adesão ao mundo que existe.

Uma carta de suicídio de quem não suporta mais ver o mundo que existe.

De quem não suporta mais saber que para o mundo existir, torna-se necessário sacar a existência do menino que dorme ao meio-dia, na calçada cheia de gente. (Se não lhe saco a existência, não parto a caminho de lugar nenhum).

Mas para onde parto, já que adio meu existir num ato egoísta?

Não o adio por ninguém, senão por mim mesmo, e se o adio por mim mesmo, estou fugindo.

Se não sei para onde parto, como saberia para onde fujo?

Estanco minha fuga na consciência de que sei que há o menino que dorme ao sol de meio-dia, na calçada cheia de gente. E antes de qualquer compaixão, há a consciência, que me leva a compará-lo a um cachorro.

É como um cachorro, não mais um menino de rua. Ele não busca abrigo na marquise durante a noite, ou na chuva. Ele se estira exausto, ao sol do meio-dia, à passagem de todos. E fui eu quem lhe sugou a existência.

Da consciência, e não da compaixão, vem a culpa.

Mas a culpa a gente abana, como um cachorro sacode suas pulgas.

Sinto culpa também por ter medo, me odeio por ter medo. Tenho vontade de não ter nada, para não ter medo. Mas é preciso, antes, ter coragem para não ter nada.

Mas sinto que estou me perdendo. Voltando ao assunto, esta é uma carta de suicídio.

Não vou me matar, é claro, por causa do menino. Não o menino estirado no chão, ao sol de meio-dia. Talvez pelo medo que tenho de outro, o de olhos castanhos enormes, que me olha e pergunta:

- Você não queria ser cantor?

- Não, eu nunca quis ser cantor. Queria, isso sim, cantar bem.

- Mas esse é o verdadeiro desejo de ser cantor. Agora, veja você, quer ser jornalista, quer ser escritor. Não quer escrever bem. Entende a diferença?

Entendo e não entendo. O menino dos grandes olho castanhos é enigmático. Mas ele vê o menino estirado no chão ao sol de meio-dia.

Estou mais uma vez fugindo do assunto. Isto é uma carta de suicídio. E digo mais, é uma carta e um apelo. Que hoje, comigo, você que me lê também se suicide, porque não há motivo maior para isso do que os motivos que citei acima. E a eles poderia acrescentar muitos outros, mas todos convergem para as prateleiras de auto-ajuda e as dos antidepressivos cheias.

E se você concordar comigo que realmente há motivos para se matar por isso, vai concordar também que a vida sem as prateleiras de auto-ajuda e de antidepressivos vazias é a vida plena que queremos ter. E se assim é, a gente se mata para viver.

(Pausa grande)

Agora que já me matei, vou me redesenhar. Vou marcar pequenos pontos num papel, e em seguida conectá-los com linhas. Do desenho que sair, este sou eu. Se algum de vocês quiser seguir a receita, segue como exemplo, abaixo, alguns dos pontos que escolhi:

- Ter visto no curta da Maria-Flor o cartão postal que dei para ela.
- A morena que sambava na festa da Carol.
- A risada do Clodoaldo.
- A altivez do Rodolfo
- O fato de não ter nada para dizer sobre o Rafael
- O fato de ter pensado em escrever um texto sobre a nobreza de pessoas simples, e ter vontade de citar como exemplo o sambista Monarco, que parece um príncipe. Monarquia já!
- O fato de usar o livro Paz, Amor e SGT. Peppers como mouse pad.
- O fato de ter escrito um texto completamente desconexo, e não saber como terminá-lo, mas saber que não quero, e não vou terminá-lo depois.


texto publicado originalmente em 09/07. Mudam-se os anos e os pontos para o redesenho. A perplexidade permanece.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Nina Simone - My Baby Just Cares For Me (Live - Montreux)

My baby don care, mas eu ligo


Estou apaixonado por Nina Simone. Quase sempre, minhas paixões musicais decorrem das outras, mas não é isso que vem ao caso.

O que acontece é que ontem eu estava maravilhado com a infinidade de versões para "My Baby Just Cares" que estão disponíveis no YouTube. É possível encontrar até mesmo uma versão de 1930, de Jack Paine and His Band - possivelmente a mais próxima da original, composta por Walter Donaldson e Gus Kahn para um musical de 1928. Obviamente, as versões de Nina se destacam. A que apresento no vídeo acima, se não é a mais bonita, é a que melhor mostra seu gênio musical. Mas também não é isso que vem ao caso.

Ao ouvir a música, eu não conseguia entender de forma alguma o verso " Liz Taylor is not his style", talvez por causa da inconfundível - e irresistível - pronuncia da " Nega." Fui buscar a letra no Google e na primeira estrofe encontrei uma surpresa: a palavra "cars", do verso "My baby dont care for cars" era um link. Ao clicar sobre ele, fui submetido a uma oferta relacionada a automóveis. Incrédulo, cliquei outra vez, e surgiu novo anúncio, também relacionado a venda de carros e peças automotivas. Fiquei cheio de dúvidas, e como sempre, resolvi partilhá-las aqui.

O acaso é mais forte do que os propósitos, pois é amigo de longa data da ironia. Justamente na letra de uma canção que fala de alguém que não liga para roupas, shows, badalação, carros, encontro pela primeira vez esse tipo de publicidade. Os especialistas poderão me explicar que se trata de uma importante e eficiente ferramenta de vendas, que associa nomes, cria sistemas, estatísticas, e ao final das contas facilita cada vez mais nossa vida. A eles, respondo apenas que nossa vida está a cada dia mais difícil. Mas persiste a dúvida: será mesmo necessário que tudo vire propaganda ? Há alguns anos, me assustei quando vi uma luz forte no céu, na altura do Pão de Açúcar. Pela manhã, constatei que o OVNI era um carro esporte, pendurado pelos cabos do bondinho para fazer a sua campanha de lançamento.

Naquele dia, tal qual na canção de Caetano, meus olhos buscavam discos voadores no céu, e acabei encontrando um carro. Ontem, eu queria a letra de uma música, e também encontrei um carro. Há claramente uma confusão entre o que se busca e o que se acha. Deve ser por isso que os gênios da propaganda acreditam que quando eu quiser, finalmente, um carro, buscarei por felicidade, carinho e conforto. Mas eu e Nina, que não somos bobos nem nada, sabemos que isso só " My baby" tem.


terça-feira, 21 de abril de 2009

Faz de conta que sou o primeiro

metafísica barata de uma segunda-feira na Lapa

Ontem, na Lapa, reencontrei Rafael. Numa das últimas vezes em que tínhamos bebido juntos, ele me apresentou Agepê, um clássico popular dos anos noventa, que anda um pouco esquecido. Como gostei do que ouvi, busquei outras músicas e informações. Agepê, agora descubro, tirou seu nome artístico das iniciais de Antônio Gilson Porfírio. Sujeito de carreira longa e vida breve, foi integrante da ala de compositores da Portela, o que no mundo do samba é como ter um posto na Filarmônica de Berlim – mesmo que seja na última estante do segundo violino.

Além disso, foi o primeiro cantor de samba a ultrapassar a marca de um milhão e meio de discos vendidos, sucesso que deve ser creditado a “Deixa eu te amar”, hit que apresento no vídeo acima. Quando ouvi a música, me dei conta que já o conhecia, mas quando ele morreu de cirrose, em 1995, aos 53 anos, eu tinha apenas 11, e estava mais preocupado em ter um posto na Filarmônica de Berlim.


Meu aprendizado instantâneo sobre o cantor se deu, é claro, com o auxílio dos agora inseparáveis Wikipédia e Youtube. Mas a única coisa que eu não encontro em lugar algum é resposta para uma grande questão metafísica, que me assombrou ontem, ao falar de Agepê na Lapa: afinal, ele foi o primeiro dos sambistas ruins, ou o último dos bons? Seus samba caminha sobre uma linha que de um lado coloca os bambas e de outro a praga que se espalharia pelo país nos anos seguintes: o chamado pagode, samba de branco, de paulista, romântico, ou sambabaca. Agepê cruzou a linha, ou ficou sobre ela, heróico, bêbado equilibrista?

Estou preocupado em descobrir, mas isso não significa que eu tenha preconceitos com bregas. O que me intriga, na verdade, é o intangível. É o que faz, por exemplo, "Antes do Por do Sol" ser um filme bom e não uma comédia romântica; faz muita gente só entender porque Roberto Carlos é o rei quando o assiste ao vivo; faz Romero Brito ser ruim e Beatriz Milhazes boa; faz com que Reggae só possa ser cantado por Bob Marley, e dá a Nelson Rodrigues e Antônio Maria a exclusividade no uso de palavras e expressões, que ditas por outros soam piegas.

Talvez o que chamo de intangível seja uma substância ainda não catalogada na tabela periódica. Algo que se carrega sem saber, e que Gal Costa deixou cair em alguma esquina. É o exato elemento que Chico Buarque transferiu, não sei se deliberadamente, de seus discos para seus livros e Didi Mocó deixou escorregar de suas piadas. É o que Caetano reencontrou em “Cê”. Mas confesso que não sei de que seria feita esta matéria invisível. Nos anos de ditadura, um delegado de polícia levantou questão semelhante. Ele interrogava o artista plástico Paulo Brusky, e num determinado momento perguntou:

- Quer dizer então que se eu tirar um azulejo do chão e colocar nessa parede, é arte?

Paulo lhe respondeu:

- Se você colocar não. Se eu colocar é.

A frase é boa, mas não soluciona a questão. Talvez Agepê soubesse a resposta, ou nem se preocupasse com isso, o que é ainda melhor. Mas Agepê morreu, e eu e o delegado ficamos sem respostas. Já Paulo Bruski, tal qual o galo pateta, levou um coice e criou um galo.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Crônica de Segunda


O dia em que o gringo se ajoelhou diante de mim



O mural da faculdade onde estudei é universo maior do que qualquer portal de Internet, enciclopédia online, youtube, ou biblioteca borgiana. Ainda hoje, quando assombro a velha escola, é diante dele que paro, absorto. Mais do que por saudosismo, paro em busca de respostas. Foi a partir dele, em diversos momentos, que algumas estradas se abriram.

Durante o curso, eu lia todos os dias os anúncios do mural. Nele podia estar seu primeiro estágio, seu décimo companheiro de apartamento, a festa da próxima semana, um grupo de Somaterapia, o convite para uma peça de teatro, o anúncio do Movimento Gay Universitário, a convocatória para a missa do Movimento Católico Universitário, ou simplesmente a caricatura mal feita de um professor. Era quase certo também que lá estivesse algum anúncio com um erro crasso de Português, que alguém corrigia a caneta, sem nunca esquecer de deixar uma piada sobre as qualidades literárias do escriba. Foi neste mural que no primeiro período encontrei a seguinte frase “Preciso professor para Português".

Naquela época, eu precisava mais do que ninguém de um professor de Português, como ainda hoje eu o mundo precisamos, mas precisando também de dinheiro, arranquei o papel do mural, e fui para casa. James Scott Zimmerman é hoje um grande amigo, e costuma contar para todos que fui quem lhe ensinou a falar Português. Não mereço o crédito. Scott é de uma inteligência espantosa. De todo modo, sua voz rouca e sua fala cadenciada foram meu cartão de visitas pelos albergues e bares de estrangeiros da cidade durante muito tempo.

O segundo aluno que tive foi um inglês chamado Alex. Seu único objetivo com relação à língua era se comunicar com a namorada brasileira. As primeiras aulas foram desanimadoras. Ele não possuía a muleta sempre útil do espanhol, e quanto ao Português, suspeito que tenha lhe ensinado a primeira palavra. De minha parte, eu não possuía nem método nem didática, mas usei a paciência como minha aliada. Um dia, ao fim de uma aula em que ele se saíra muito bem, Alex se ajoelhou diante de mim, e com as mãos postas me disse: “Obrigado, Pedro, estou conseguindo falar com minha namorada.” Fiquei surpreso e comovido.

Nunca mais vi Alex. Provavelmente partiu para o Reino Unido levando a namorada e meia dúzia de palavras em Português, que já esqueceu. Mas nunca vou me esquecer daquela cena. É dela que tiro a coragem para reescrever um texto quantas vezes for necessário. É ela que me faz ir ao dicionário cada vez que tropeço numa palavra ao ler um romance. É a partir do gesto de Alex que tenho ânimo para estudar novas línguas.

Eu vi e pude compreender o desespero e a fragilidade do homem diante da impossibilidade de se expressar, falar de si, falar aos outros, gritar ao mundo. O homem quer e tem direito de falar de sua dor, seja ela fome, miséria ou amor. O homem quer os instrumentos e nem sempre é possível buscá-los sozinho. Não é preciso um oráculo, um mestre, um Cumpadi meu Quelemém, que tem sempre as palavras certas. É preciso alguém que saiba se inventar, e inventar alguém consigo. É preciso professor para Português.

É em Alex que penso toda vez que não sei o que dizer diante do mundo ou diante dela. E imitando seu gesto, toda vez que chego ao ponto final de um livro, digo de joelhos e mãos postas: obrigado, João, obrigado Fernando, obrigado Joaquim, obrigado João Cabral, obrigado Carlos, obrigado Erico, obrigado Luís Fernando, obrigado José, obrigado Hélio, obrigado Fiódor, obrigado Jack, obrigado Gabriel, obrigado Miguel, obrigado Ziraldo, obrigado Jorge, obrigado John, obrigado James, obrigado Alfredo, obrigado Ernest, obrigado Humberto, obrigado Ferreira, obrigado Manuel...

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Crônica de Segunda



As coisas e o porquê das coisas



Perguntaram a Edmund Hilary - primeiro homem a subir e a descer do cume do Everest - por que os homens escalam montanhas. A resposta foi lacônica:

- Porque elas estão lá.

Wolfgang Gülich, outro grande escalador, reeditou a frase na década de 80. Um repórter lhe perguntou por que escalava, ao que ele respondeu:

- Porque é divertido.

Perguntaram a João Ubaldo Ribeiro sobre a decisão de ser escritor:


- Eu acredito que é muito feio uma pessoa não exercer uma atividade para a qual Deus lhe destinou talento.

De minha parte, escalo porque é divertido e as montanhas estão lá, mas escrever não é agradável. As palavras não estão em lugar algum.

Seria presunção demais crer que Deus me deu algum talento para a escrita. Acho que nunca, em vida, vou ter certeza disso. Mas como também não posso ter certeza de que Deus existe, escrevo.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Literatura de Quinta

Kiwi

Só agora, depois de perceber o quanto o queijo gorgonzola é salgado, me arrependo de ter pedido um crepe. Ele estava a menos da metade, quando chegou o suco de Kiwi. Só agora, lembrei de Augusto. Talvez tenha passado os últimos vinte anos sem lembrar de sua existência. Pensei numa tarde, eu devia ter dez anos. Falávamos sobre frutas no recreio. Eu disse que gostava de Kiwi. Passou uma ou duas semanas, o Augusto me veio com a pergunta. No domingo, a família havia comprado Kiwi, mas não soube comê-los. Como lembrara que eu gostava da fruta, queria saber se Kiwi era comido com ou sem casca. Não soube respondê-lo. Nunca tinha comido Kiwi. A história, na conversa anterior, havia sido mais uma das mentiras despretensiosas que se conta na infância.

Só agora, tomando em grandes goles o suco de Kiwi, acho um pouco mais pretensiosa a pergunta de Augusto. Não que tenha partido dele. Era um garoto tranqüilo. Mas talvez o pai, querendo me provar, apurar aquela história. Como o filho da faxineira do Dom Silvério poderia comer Kiwi? Eram essas as pequenas coisas que separavam nós, filhos dos empregados, deles, que pagavam a mensalidade. As grandes coisas, às vezes, eram transponíveis: eu estudava no melhor colégio da cidade. Mas era filho da faxineira, e nunca tinha comido Kiwi.

Só agora, gostaria de encontrar Augusto. Talvez uma buzinada. Quem sabe, chamá-lo para um almoço, servir de sobremesa uma grande tigela de Kiwi, e devorá-los com casca. Mas ele não deve se lembrar do que aconteceu. Minha mãe sempre dizia que eu era como os grandes arquivos do colégio, onde os padres guardavam fichas de várias gerações de alunos. Mas até os arquivos, apesar da mania de precaução dos padres, eram esvaziados de vez em quando daquilo que não lhes era mais essencial.

Só agora, com a família viajando, eu comia sozinho e pensava. O crepe chegou ao fim. Só agora, sorvo o resto do suco que se acumula junto da espuma, no fundo do copo, sem temer as reações que o barulho possa provocar no restaurante. Sinto alguns caroços sobre a língua. Percebo que os Kiwis são parentes dos morangos, apesar de que estes são comeidos com casca. Peço a conta, e volto pra casa.

MicroPoema ilustrado sobre a tristeza,

ou Como o deus Futebol negocia com parcimônia as alegrias e frustrações que distribui.

"O GOL DE CANIGGIA
FOI MEU PRIMEIRO GOL DE GIGGHIA.
DEPOIS VIERAM OUTROS MAIS."

domingo, 25 de janeiro de 2009

Literatura de quinta

Alaranjados e Vermelhos

Ela nem reparou, mas os dois peixes do aquário têm a cor de seu cabelo. Passa na sala todos os dias, senta no sofá, coloca as meias, o tênis, e sai. Muito mais fácil colocar a calça depois das meias, o algodão desliza melhor pelo jeans do que os pés nus, ainda um pouco molhados do banho. Mas a janela da sala não tem cortinas, e ela sempre esquece de levar as meias para o banheiro. Por isso, já vestida, anda até a sala com a toalha nas mãos, senta no sofá, pega o par de meias que estava dentro do tênis, coloca as meias, o tênis, e sai. Às vezes olha para o aquário na estante, em cima da televisão, mas não reparou ainda que os peixes têm a cor de seu cabelo. São dois, entre alaranjados e vermelhos. Acho que se chama japonês esse tipo de peixe.

Ela não reparou. Desce despencando os três andares do prédio sem elevador, e na rua começa a aflição. Nada no Rio é tranqüilo. Mesmos nas atividades mais corriqueiras e prazerosas, como ir à praia, ou à padaria, sempre fica a sensação de que é preciso estar atento. A tensão não vem do que se lê nos jornais, ela mal tem tempo de ler os jornais, mas da própria cidade - não o Rio, mas a cidade que mora dentro dela, a cidade onde nasceu e viveu até os dezoito anos.

No começo, ruborizava por tudo. O pior dia, lembrança da qual ainda sente vergonha, foi quando pediu uma pipoca sem casca. Teve que aturar o pipoqueiro rindo, um riso debochado, que lhe doeu. Ficou entre alaranjada e vermelha. Da cor dos peixes e do cabelo, mas na época não tinha nem peixes nem cabelos pintados.

Hoje, os cabelos entre alaranjados e vermelhos, deslizam com mais facilidade nas ruas da cidade, mas, ainda assim, sem o conforto das meias vestidas antes de se colocar a calça jeans. Talvez só abandone a cidade dentro dela para viver na de agora quando encontrar na esquina um pipoqueiro que venda pipocas sem casca, que ela demorou dezoito anos para descobrir que só existem em Petrópolis. Ou quando alguém lhe mostrar que os dois peixes em cima da estante têm a cor de seus cabelos.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Literatura de primeira

Minha irmã mais nova


Olívia é minha irmã mais velha, de um amor grande e desastrado. Lara é a mais nova. Fico no meio. Minha mãe teve a feliz idéia de nos dar três nomes que, chutando a modéstia de lado, são lindos. Nunca vou esquecer da sonoridade: “ Olivia Pedro e Lara”. Era o porteiro da escola anunciando a chegada de um Fiat 147 vermelho. “Olívia Pedro e Lara”, uma canção feliz da minha infância.

Acontece que apesar de minha mãe ter acertado com nossos nomes, muitos anos antes, um pernambucano de nome Pedro Ferreira dos Santos achou de se batizar Pedro de Lara para ser artista. A conclusão da história é que eu e Lara somos obrigados a ouvir, até hoje, a perguntinha cretina: “Sua mãe gostava muito do Pedro de Lara?” Dessa, Olívia escapou, embora creio que se zangasse um pouco quando a chamavam de Olívia Palito.

Por causa da história do Pedro de Lara, costumo evitar chamar as pessoas por seu apelido óbvio. É uma maneira de preservá-las da chatice. No meu trabalho há o editor Fábio Watson. Jamais, em tempo algum, ele ouvirá de mim: “Elementar, meu caro Watson.” Há também o escritor João Paulo Cuenca, que não vai ter a infelicidade de escutar qualquer piada que faça referência à suas roupas íntimas. A menina Juliana Dametto, contou-me, certa vez, que sua priminha lhe perguntara: “Juliana, no seu colégio também te chamavam de Da Medo ? ” Por essas e por outras, mesmo adorando dar e receber apelidos, evito essas obviedades. É uma forma de evitar a chatice, como falei, e também de exercitar a criatividade.

Tudo isso, para falar de Lara. Olívia, como disse, escapou da pergunta cretina, e por enquanto, escapou também do sofrimento que é ser adestrador de palavras. Mas no fundo, agora pensando, talvez Lara não sofra de verdade ao escrever. Ao menos é o que penso todas as vezes que leio seu blog. Escreve muito melhor do que eu, embora leia bem menos e seja artista plástica, enquanto sou jornalista. Suas palavras e frases circulam com a facilidade com que ela gira pelo mundo e pelas coisas. Lê bem menos, e quando fecha o Dostoievski, liga o Big Brother. E escreve melhor do que eu.


Abaixo, um miniconto. Um exemplo do que se pode encontrar no blog dela -- endereço lá embaixo, no final da página -- O blog é quase totalmente dedicado à poesia, mas sua prosa...bem, vocês já sabem, sua prosa é melhor do que a minha.

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E até os dez anos de idade meu pai se despedia de mim com um beijo na boca.

Enquanto de três em três horas observo a sala, penso nisso. Olho o retrato da porta pelo olho mágico:

Eu agarrado à bola de futebol, em frente à TV, ele afoito passa e desliga, chuta a bola de mim, deixa eu correr atrás pra driblar me dar um tapa nas costas, o beijo de café e tchau.

Na frigideira um ovo, o cheiro de mãe e na boca o gosto de pai. Só sei associar assim. Se a tarde era escola tinha cheiro de massinha, de suor, gosto de sanduíche de atum, de bolinha de amendoim. E no fim, a saída, o ralado... os cheiros e gostos de sangue.

Na chegada do pai não tinha gosto, era puro cheiro o sujeito. A mãe era puro desgosto e gordura, aponta com a colher de pau tem os dedos trincados a segurança desarmada e lúcida. O homem da noite é cansaço, cabeça baixa, olhar perdido. Nem bola nem café.

Dos anos, o homem tomou conta, o cheiro da pura tomou o lugar do gosto de café. O ar perdeu todos os outros gostos, à tarde a escola era matemática, chatice, desperdício. A noite era dormir, nem um sentir, nem faro nem paladar. A mãe sempre deitada, à espera. O sujeito de pazes com uma rotina desgastada de dor, se conforma.

Quando saio do olho mágico, nem magia sinto mais. Só desgosto, desprezo, desapreço. Que hora pra lembrar, que dia pra parar. O trabalho aqui, as despesas em casa e ficar com a memória do pai virando sujeito homem, vazio de afetos. Se me largo como ele nem sei... aliás, sei que não vou. Vou à procura de um café e nem deixo a bola murcha.
Lara Leal

sábado, 10 de janeiro de 2009

Literatura de quinta

A Maquina


Quando eu era menino, meu pai costumava pedir para que eu apagasse alguma luz que havia deixado acesa em casa bradando que não era sócio da Light. Isso numa época em que eu mal sabia o que era ser sócio e muito menos o que significava Light. Com o tempo, soube de outros amigos, que a bronca era a mesma na casa deles. Hoje, que bem sei o que é ser sócio, e tenho uma baita conta da Light para pagar todo fim de mês, fico me perguntando como deve ter sido a infância do filho do sócio da Light. Imagino um palacete iluminado, com imensas janelas de vidro, ostentando luz em meio às casas de um bairro alto, talvez o Valparaíso. Toda vez que o filho apagasse alguma luz acesa na casa, o pai lhe diria carinhosamente: “Precisa, não filho, papai é sócio da Light.”

Mas esse menino também tinha lá suas angústias. Muitos de seus amigos insistiam em dormir em sua casa, mas ele duvidava da honestidade da amizade deles. Poderiam ser interesseiros. Não por causa de seus brinquedos caros - no seu ciclo de amizade, todos eram filhos de algum tipo de sócio: seja de empreiteiras, multinacionais ou até mesmo de bancos - mas o filho do sócio da Light, às vezes, tinha a impressão de que os amigos só queriam ir à sua casa porque, como quase todos os meninos da sua idade, tinham medo do escuro.

Ele não, ele tinha medo é de claridade. No auge do verão, quando ia para a piscina do Petropolitano, tão logo o sol de meio-dia começava a devorar as sombras, ele telefonava pra casa e pedia para que a babá fosse buscá-lo. A preta, muitas vezes, pensava que ele era um menino problemático, triste. Mas tão logo chegava do clube, ele se refugiava nas sombras de uma mangueira nos fundos do quintal, e brincava a tarde toda.

Hoje, acabou a luz na empresa. Esperamos por quase três horas para que ela retornasse e nada. Quando o trabalho começou a se acumular sobre as mesas, um dos sócios teve uma idéia brilhante: foi até um armário nos fundos da garagem e retirou de lá quatro Remingtons empoeiradas. Ele sorriu triunfante. A idéia de guardar as máquinas, há mais de quinze anos, não fora coisa de velho, como disseram à época. Feliz como um menino que ganha um brinquedo novo, eu comecei a traduzir um documento para o consulado. O tec-tec que meus dedos produziam me fez sentir uma imensa saudade do meu pai.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Participação especial de quarta


Foto do amigo Rafael Bacelar. A Central, Nova York, o Kremlin, tudo logo ali.


terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Vídeo de terça

Um Certo James Page

Se você passou adolescência ouvindo este cara, agora é hora de dar uma espiada na adolescência dele.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Crônica de segunda

Israel em Abril

Tenho um amigo que depois de ler "Vidas Secas", deu de cismar com bolandeira. A bolandeira, só fui ver uma, em Abril Despedaçado. A bolandeira girando, girando, os bois rodando, rodando, e a vida se fazendo sem fio e sem volta.

Como se tivesse lido a "Ideologia Alemã", ou as "Teses sobre Feuerbach", Pacu grita, numa cena do filme:


- Tonho, Tonho, os bois estão rodando sozinhos.

Os bois, nós. Israel, a Palestina. A Faixa de Gaza, sempre a mesma faixa, arranhada, do disco que nunca fura. Bem que ameaçam, mas o disco nunca fura. Ou alguém já viu furar ? A faixa: mais do que a intolerância, o nó cego, os laços, como as tiras negras nos braços dos premetidos da morte de cada uma das duas famílias de Abril Despedaçado. O ataque seguido de um contra-ataque, seguido de um ataque, de um contra-ataque e sempre assim. Sem porém a alegria de um gol.