Minha irmã mais nova
Olívia é minha irmã mais velha, de um amor grande e desastrado. Lara é a mais nova. Fico no meio. Minha mãe teve a feliz idéia de nos dar três nomes que, chutando a modéstia de lado, são lindos. Nunca vou esquecer da sonoridade: “ Olivia Pedro e Lara”. Era o porteiro da escola anunciando a chegada de um Fiat 147 vermelho. “Olívia Pedro e Lara”, uma canção feliz da minha infância.
Acontece que apesar de minha mãe ter acertado com nossos nomes, muitos anos antes, um pernambucano de nome Pedro Ferreira dos Santos achou de se batizar Pedro de Lara para ser artista. A conclusão da história é que eu e Lara somos obrigados a ouvir, até hoje, a perguntinha cretina: “Sua mãe gostava muito do Pedro de Lara?” Dessa, Olívia escapou, embora creio que se zangasse um pouco quando a chamavam de Olívia Palito.
Por causa da história do Pedro de Lara, costumo evitar chamar as pessoas por seu apelido óbvio. É uma maneira de preservá-las da chatice. No meu trabalho há o editor Fábio Watson. Jamais, em tempo algum, ele ouvirá de mim: “Elementar, meu caro Watson.” Há também o escritor João Paulo Cuenca, que não vai ter a infelicidade de escutar qualquer piada que faça referência à suas roupas íntimas. A menina Juliana Dametto, contou-me, certa vez, que sua priminha lhe perguntara: “Juliana, no seu colégio também te chamavam de Da Medo ? ” Por essas e por outras, mesmo adorando dar e receber apelidos, evito essas obviedades. É uma forma de evitar a chatice, como falei, e também de exercitar a criatividade.
Tudo isso, para falar de Lara. Olívia, como disse, escapou da pergunta cretina, e por enquanto, escapou também do sofrimento que é ser adestrador de palavras. Mas no fundo, agora pensando, talvez Lara não sofra de verdade ao escrever. Ao menos é o que penso todas as vezes que leio seu blog. Escreve muito melhor do que eu, embora leia bem menos e seja artista plástica, enquanto sou jornalista. Suas palavras e frases circulam com a facilidade com que ela gira pelo mundo e pelas coisas. Lê bem menos, e quando fecha o Dostoievski, liga o Big Brother. E escreve melhor do que eu.
Abaixo, um miniconto. Um exemplo do que se pode encontrar no blog dela -- endereço lá embaixo, no final da página -- O blog é quase totalmente dedicado à poesia, mas sua prosa...bem, vocês já sabem, sua prosa é melhor do que a minha.
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E até os dez anos de idade meu pai se despedia de mim com um beijo na boca.
Enquanto de três em três horas observo a sala, penso nisso. Olho o retrato da porta pelo olho mágico:
Eu agarrado à bola de futebol, em frente à TV, ele afoito passa e desliga, chuta a bola de mim, deixa eu correr atrás pra driblar me dar um tapa nas costas, o beijo de café e tchau.
Na frigideira um ovo, o cheiro de mãe e na boca o gosto de pai. Só sei associar assim. Se a tarde era escola tinha cheiro de massinha, de suor, gosto de sanduíche de atum, de bolinha de amendoim. E no fim, a saída, o ralado... os cheiros e gostos de sangue.
Na chegada do pai não tinha gosto, era puro cheiro o sujeito. A mãe era puro desgosto e gordura, aponta com a colher de pau tem os dedos trincados a segurança desarmada e lúcida. O homem da noite é cansaço, cabeça baixa, olhar perdido. Nem bola nem café.
Dos anos, o homem tomou conta, o cheiro da pura tomou o lugar do gosto de café. O ar perdeu todos os outros gostos, à tarde a escola era matemática, chatice, desperdício. A noite era dormir, nem um sentir, nem faro nem paladar. A mãe sempre deitada, à espera. O sujeito de pazes com uma rotina desgastada de dor, se conforma.
Quando saio do olho mágico, nem magia sinto mais. Só desgosto, desprezo, desapreço. Que hora pra lembrar, que dia pra parar. O trabalho aqui, as despesas em casa e ficar com a memória do pai virando sujeito homem, vazio de afetos. Se me largo como ele nem sei... aliás, sei que não vou. Vou à procura de um café e nem deixo a bola murcha.
Lara Leal